Guedes tortura estatísticas para “mostrar” retomada inédita (e falsa)

Publicado por: Lauro Veiga Filho | Postado em: 10 de agosto de 2021

Um renomado editor de economia, já falecido, com passagem por grandes jornais e revistas, gostava de dizer que as estatísticas, sob tortura, podem confessar qualquer coisa, menos mostrar a realidade. Não por coincidência, a Secretaria de Política Econômica (SPE) do Ministério da Economia tem se especializado em práticas de tortura explícita contra os dados da realidade, o que não deveria surpreender sendo o ministro quem é e conhecendo-se o desgoverno ao qual serve. Em nota informativa divulgada em 27 de julho, a SPE tenta “provar” que a economia operou uma recuperação inédita, com a “retomada econômica da crise da Covid-19 (…) acontecendo a taxas mais altas que nas crises anteriores”, num movimento aliás liderado pelo investimento privado.

Já na introdução impõem-se os primeiros reparos. A equipe do ministro Guedes, aquele que já foi o queridinho dos mercados, insiste em desagregar os setores públicos e privados em sua “análise” atravessada dos dados macroeconômicos, como se fosse naturalmente possível separar aquelas duas áreas da economia, algo que as contas nacionais não contemplam, assim como os livros texto de economia, mesmo aqueles de corte mais liberal. Trata-se, claro, de uma posição meramente ideológica, que tenta “pintar” qualquer ação ou atividade relacionada ao setor público como ineficiente e geradora de distorções. Adicionalmente, a SPE parece dar de barato que a “crise da Covid-19” teria sido superada, num momento em que o número de mortes no País pelo Sars-CoV-2 supera 560,0 mil.

O conceito de Formação Bruta de Capital Fixo (FBCF), um dos componentes do Produto Interno Bruto (PIB), observa Bráulio Borges, economista-sênior da área de macroeconomia da consultoria LCA e pesquisadorassociado do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (Ibre/FGV), corresponde à entrada na economia “de novos investimentos em máquinas, equipamentos, estruturas, construções, plantações permanentes, gado reprodutor e, ainda, ativos intangíveis (como gastos com pesquisa e desenvolvimento, softwares, dentre outros)”. A variável não faz distinção entre investimentos públicos e privados, que são complementares e que, quando acionados corretamente, contribuem de fato para construir condições para um crescimento sustentável e de longo prazo.

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Mentiras em série

Ao avaliar a nota informativa da SPE, Borges contesta suas conclusões, deixando claro que “uma análise mais cuidadosa não corrobora a avaliação” da secretaria. Mais claramente, com base em dados concretos, o economista demonstra que a tal recuperação do investimento doméstica, que teria ocorrido desde o ponto mais crítico das medidas de distanciamento social, em março e abril do ano passado, tem sido a mais débil quando comparada ao ocorrido na sequência das demais crises econômicas sofridas pelo País em quase quatro séculos. Não apenas o investimento tem sido mais fraco do que o alardeado pela equipe econômica como também tem sido insuficiente para promover o aumento da capacidade de oferta de novos bens e serviços. Mais claramente, há uma estagnação nesta área e não o propalado crescimento recorde, reafirmando a capacidade de a equipe do senhor Paulo Guedes produzir mentiras em série, sem o menor pejo.

Balanço

  • A SPE atribui o seu próprio “sucesso” na condução da economia durante a crise a “medidas pró-mercado” e à “consolidação fiscal”, em marcha às custas do arrocho no investimento público, cortes de gastos nas áreas de educação, pesquisa científica, cultura e mesmo em setores da saúde. Essa combinação teria permitido uma “redução estrutural (permanente) da taxa de juros” (que voltaram a subir desde março passado) e o direcionamento dos investimentos privados para “o empreendimento mais eficiente”.
  • Por pura ideologia, mais uma vez, a secretaria nega que as medidas anticíclicas adotadas no ano passado tenham tido qualquer influência sobre a economia. Aquelas medidas foram adotadas exatamente para aliviar o impacto da crise sobre a atividade econômica eincluíram linhas de crédito para micro, pequenas e médias empresas, a oferta de garantias do Tesouro nos empréstimos àqueles mesmos setores, a distribuição do auxílio emergencial às famílias mais vulneráveis e o reforço no orçamento do setor público de saúde, num total aproximado de R$ 594,0 bilhões, nas contas da mesma SPE.
  • Custa crer que essa montanha de recursos não tenha exercido qualquer contribuição para evitar um tombo ainda maior da economia no ano passado. E de fato as coisas não transcorreram como pretende fazer crer a SPE. Borges estima que os estímulos fiscais concedidos apenas em 2020 aproximaram-se de oito pontos de porcentagem do PIB, “o maior já adotado em um único ano desde 1998 (início da série histórica)”, o que “denota que a política fiscal brasileira foi fortemente expansionista e anticíclica nesta recessão”.
  • Além disso, devem ser acrescidos à conta 0,4 pontos de porcentagem do PIB em função do aumento dos investimentos da Petrobrás e da Eletrobrás e outros seis pontos referentes a “garantias concedidas pelo Tesouro Nacional e linhas de crédito dos bancos públicos para apoiar medidas creditícias focadas em pequenas e médias empresas”. Para completar, a política monetária “atuou na mesma direção”, com o Banco Central (BC) reduzindo a taxa real de juros (descontada a inflação) “para níveis bastante negativos”.
  • O economista questiona: “Qual o problema em reconhecer que a política econômica foi fortemente estimulativa em 2020, já que ela atuou na direção correta (anticíclica)?”. A resposta parece estar precisamente na opção contra o Estado assumida desde o início pela equipe econômica.
  • Para complicar, a SPE escolheu taxas de variação muito baixas, próximas à estagnação, como tendência para o PIB na sequência do pior momento da crise, tomando o comportamento trimestral da economia nos três anos anteriores. Isso fez com que qualquer variação ganhasse expressão m relação a uma linha de tendência muito achatada, ao contrário das tendências projetadas na saída das crises anteriores. O nome para isso, evitado pelo economista, é manipulação.
  • O desempenho do investimento tem sido influenciado fortemente pelas “exportações ‘fictas’ de plataformas de exploração de petróleo e posterior internalização contábil desses ativos”, aponta Borges. Numa estimativa da equipe de conjuntura do Ibre, essas operações teriam inflação a taxa de variação dos investimentos em algo em torno de quatro pontos de porcentagem no ano passado. Vale dizer, “ao invés de ter recuado 0,8% em 2020, como apontam os dados oficiais do IBGE, a verdadeira variação da FBCF (do investimento) estaria em torno de -5,0%”. O mesmo “fenômeno” teria ocorrido no primeiro trimestre deste ano.
  • Na prática, demonstra ainda Borges, o investimento realizado não foi suficiente para repor o desgaste e depreciação das máquinas, equipamentos e outros componentes do capital instalado no País. Mais claramente, não se criou capacidade nova de produção e oferta de bens, o que significa uma limitação equivalente para as possibilidades de um crescimento mais vigoroso da economia.