Maternidade sem escolha: o retrato literário da imposição
Em A filha primitiva, Vanessa Passos constrói uma narrativa intensa e desconfortável sobre maternidade, abandono e identidade. A protagonista, uma mulher que acaba de dar à luz, não encontra na experiência materna acolhimento ou afeto, mas sim o reflexo de um ciclo histórico de opressão. A escrita da personagem é atravessada por memórias de violência, raiva e silêncio, que expõem o apagamento de mulheres negras em uma sociedade estruturada pelo racismo e pelo patriarcado.
A história reúne três gerações de mulheres: avó, mãe e filha. A ausência da figura paterna, o desconhecimento da ancestralidade e a repetição dos traumas são marcas centrais da narrativa. A protagonista, apesar de sua formação acadêmica, repete o destino da mãe, também vítima de abandono e abuso. A educação, nesse caso, não foi suficiente para romper com as barreiras impostas pelo marcador racial e pela condição social.
Vanessa Passos apresenta cenas que escancaram a desigualdade no acesso a direitos básicos, como o parto humanizado. A narradora descreve sua experiência no hospital público como um matadouro, em contraste com salas equipadas para um suposto acolhimento que não se realiza. A dor do parto é atravessada pela dor simbólica de não se sentir humana diante da frieza das instituições.
O livro desconstrói a imagem da mãe abnegada e amorosa. A personagem sente raiva da filha, raiva da própria história e da ausência de respostas sobre suas origens. Essa raiva é o que impulsiona a escrita. As palavras surgem como tentativa de organização da dor e de encontro com a própria identidade. Ao escrever, a mãe se aproxima da filha e de si mesma.
Sem nomear as personagens, a autora reforça o apagamento a que essas mulheres estão submetidas. O que não se nomeia, não existe. E é justamente contra essa inexistência que a escrita se ergue como resistência. A filha primitiva é um grito literário contra o desamparo, uma denúncia das violências normalizadas e um chamado à escuta das vozes que por muito tempo foram silenciadas.
A autora
Vanessa Passos é escritora, roteirista e professora de escrita criativa, doutora em Literatura pela UFC e pós-doutora em Escrita Criativa pela PUCRS. É idealizadora de programas voltados ao empreendedorismo literário, como o 321escreva e o Método Mais Vendidos, além de liderar uma comunidade de escritoras em mais de nove países. É autora do livro de contos A mulher mais amada do mundo e do romance A filha primitiva, premiado e com adaptação para o cinema em andamento. Também atua como colunista no jornal O POVO e no PublishNews.
