Por trás dos (falsos) recordes do Tesouro, rombo salta quase 81,3%

Publicado por: Lauro Veiga Filho | Postado em: 03 de novembro de 2022

As receitas e o resultado primário em níveis históricos de alta neste ano, alardeados como o “grande sucesso” na gestão do ministro dos paraísos fiscais, não resistem a uma análise mais acurada. Em boa parte, os feitos na área fiscal derivam de receitas extraordinárias – não recorrentes, no jargão dos economistas –, que dificilmente poderão ser reeditadas daqui para frente. Parte desses ganhos na arrecadação tem sido provida pela política de extorsão virtual imposta às estatais e aos bancos públicos, levados a distribuir lucros e dividendos em ritmo acelerado, agravando seu desmonte e reduzindo a capacidade de investimentos especialmente nos setores de petróleo e energia elétrica.

Outra parcela dos aumentos de receitas, a despeito de cortes na tributação de combustíveis, como tem se vangloriado o desgoverno agora derrotado nas urnas, tem como origem a valorização nos preços internacionais das commodities (grãos e minérios), observada a partir da segunda metade do ano passado, que ajudaram a engordar os ganhos de arrecadação em setores dedicados à exploração de bens minerais. A tendência de alta nos mercados futuros de commodities parece sofrer alguma reversão neste momento, com queda para alguns produtos, movimento agravado pelos indícios de desaquecimento da economia global e pelos temores de uma recessão mundial em 2023.

Uma terceira contribuição, igualmente relevante, veio de concessões de ativos públicos ao setor privado, outra face da política de desmonte do Estado brasileiro. Por definição, neste caso, são receitas que não se repetirão mais adiante, trazendo efeito único para o caixa do Tesouro Nacional e limitado no tempo. Feitos os devidos ajustes, excluídas as receitas não recorrentes e os gastos com a pandemia, num período de 12 meses terminado em setembro, o rombo do governo central saltaria de R$ 79,849 bilhões para R$ 144,739 bilhões entre 2021 e 2022, crescendo nada menos do que 81,27% como se verá adiante.

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Desmascarando o recorde

Em setembro, praticamente todo o ganho alcançado pelas receitas totais do governo central, entidade que reúne as contas do Tesouro Nacional, da Previdência e do Banco Central (BC), pode ser explicado pelo desempenho daquelas três categorias, incluídas entre as receitas não administradas pela Receita Federal do Brasil (RFB). A valores atualizados até aquele mês pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a receita total subiu de R$ 162,697 bilhões em setembro do ano passado para quase R$ 177,757 bilhões no mesmo mês deste ano, subindo praticamente R$ 15,060 bilhões (9,3% a mais). Somadas, as receitas com dividendos, concessões e na exploração de recursos naturais saltaram de R$ 6,172 bilhões para 21,162 bilhões, num acréscimo de R$ 14,990 bilhões (alta de 242,87%). A contribuição para o ganho geral no lado das receitas atingiu nada menos do que 99,54%. Descontados esses valores, a receita total restante não teria saído do lugar, variando de R$ 156,525 bilhões para R$ 156,595 bilhões, quer dizer, uma oscilação de 0,04% em termos reais (descontada a inflação).

Balanço

  • Os números da Secretaria do Tesouro Nacional (STN) mostram que o forte crescimento das receitas ajudou a compensar com folga o avanço das despesas, deixando uma sobra em caixa para o pagamento de juros e amortizações aos verdadeiros donos da dívida pública brasileira – grandes corporações financeiras, conglomerados econômicos e rentistas em geral, famílias de alta renda que reforçam seu patrimônio apostando no cassino dos juros altos.
  • Nos dados oficiais, o superávit primário (receitas menos despesas, com exclusão dos gastos com juros) teria saltado de meros R$ 632,402 milhões em setembro do ano passado para pouco mais de R$ 10,954 bilhões em igual mês deste ano, a valores atualizados com base no IPCA. Um ganho supostamente de R$ 10,322 bilhões. Para o leitor mais atento, parece claro que o aumento apresentado pelas receitas não recorrentes, em números absolutos, supera a variação registrada pelo saldo primário, num indicativo de que o “ganho” registrado terá vida curta e não deverá se sustentar daqui para frente.
  • Excluídas as receitas de concessões, dividendos e da exploração de recursos minerais, assim como as despesas geradas pela abertura de créditos extraordinários destinados ao combate à pandemia, o superávit primário de quase R$ 8,606 bilhões anotado em setembro do ano passado teria se transformado em um déficit muito próximo de R$ 3,915 bilhões no mesmo mês deste ano.
  • No acumulado entre janeiro e setembro, igualmente a valores de setembro deste ano, a receita total avançou de R$ 1,520 trilhão para o recorde de aproximadamente R$ 1,732 trilhão, crescendo 13,9% (ou R$ 211,721 bilhões a mais). Somadas, as receitas de concessões e permissões, lucros e dividendos e aquelas provenientes da exploração de bens minerais cresceram 118,53%, passando de R$ 101,111 bilhões para R$ 220,957 bilhões, em dados arredondados, o que correspondeu a um ganho aproximado de R$ 119,846 bilhões. Portanto, em torno de 56,6% do aumento nas receitas totais saíram de três categorias de receitas não administradas pela RFB.
  • Excluídas as receitas não recorrentes e os gastos com a pandemia, o saldo primário teria caído de R$ 195,753 bilhões para pouco menos de R$ 180,820 bilhões na comparação entre aqueles dois períodos, num recuo de 7,63%. Os dados do Tesouro, sem os ajustes feitos pela coluna, mostram uma mudança nos sinais do resultado primário, saindo de um déficit próximo a R$ 88,546 bilhões no ano passado, até setembro, para superávit de R$ 35,957 bilhões.
  • Nos 12 meses encerrados em setembro deste ano, em torno de 58% do aumento nas receitas totais vieram dos mesmos itens não recorrentes. Em números, as receitas passaram de R$ 2,047 trilhões em 12 meses até setembro de 2021 para R$ 2,322 trilhões (mais R$ 274,125 bilhões, num aumento de 13,39%). As receitas “extras” avançaram de R$ 121,759 bilhões para R$ 279,906 bilhões, crescendo 29,89% (R$ 158,147 bilhões a mais).
  • A despesa total do governo central no mesmo período sofreu corte de R$ 50,319 bilhões, caindo de R$ 1,843 trilhão para R$ 1,793 trilhão, em baixa de 2,73% em termos reais. A redução explica-se principalmente pelo tombo de 75,61% registrado na conta dos créditos extraordinários, que desabaram de R$ 206,128 bilhões para R$ 50,275 bilhões (correspondendo a um corte de R$ 155,853 bilhões). Descontados os créditos abertos extraordinariamente para fazer frente a gastos para conter o Sars-CoV-2, as demais despesas subiram de R$ 1,637 trilhão para R$ 1,742 trilhão, variando 6,45% (mais R$ 105,533 bilhões). Excluídos créditos e receitas igualmente extraordinárias, o rombo do governo central, como já mencionado, aumentou 81,27% entre os dois períodos em termos reais, saindo de R$ 79,849 bilhões para R$ 144,739 bilhões.