Queda na demanda indica que a economia continua em marcha à ré

Publicado por: Lauro Veiga Filho | Postado em: 08 de junho de 2021

A pandemia desorganizou a economia, levou a perdas recordes na produção e na demanda, paralisou empresas, destroçou negócios, deixando mais de 14,8 milhões de desempregados até o final do primeiro trimestre deste ano, além de exigir um alto custo em vidas diante da incúria e irresponsabilidade do desgoverno instalado em Brasília. Nada disso é novidade. Essa desorganização, no entanto, pode ter afetado inclusive os resultados mais recentes do Produto Interno Bruto (PIB), incluindo os dados do primeiro trimestre deste ano, tão festejados pelos mercados e pelo governo.

A crise, por exemplo, alterou radicalmente o comportamento dos estoques; modificou fatores que ocorriam em períodos determinados do ano, com alongamento de feriados em diversas regiões do País, em outro exemplo; causou mudanças em hábitos de consumo; e desestruturou cadeias de suprimento de insumos e matérias-primas, causando aumento de custos e interrupção da produção em segmentos relevantes da indústria (caso do setor automobilístico, para ficar no exemplo mais notório, que suspendeu a operação de algumas unidades por falta dos chips utilizados para controlar o funcionamento de veículos).

As estatísticas passaram a não refletir adequadamente o comportamento dos diversos componentes da demanda e da oferta dentro do PIB.  No primeiro trimestre deste ano, conforme já comentado neste espaço, os dados apurados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE) mostraram elevação de 1,0% na comparação com o trimestre inicial de 2020 e alta de 1,2% frente ao quarto trimestre também do ano passado. Os parâmetros utilizados poderiam ser perfeitamente adequados para momentos de “normalidade” na economia, mas não parecem traduzir a realidade num momento de ruptura na vida do País.

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Ainda em retrocesso

Num trabalho divulgado ontem no Blog do Ibre (que vem a ser o Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas), o economista Ailton Braga, que foi analista do Banco Central (BC) entre 1998 e 2005 e desde 2006 exerce a função deconsultor legislativo do Senado, sugere que o crescimento observado no primeiro trimestre foi inflado pela “acumulação de estoques, bem como por questões técnicas relativas ao ajuste sazonal das séries do PIB trimestral”. Vale dizer, a pandemia rompeu a sazonalidade de eventos e alterou os padrões adotados normalmente para descontar esses fatores das estatísticas de forma a não comprometer comparações com meses (ou trimestres, no caso) imediatamente anteriores. Por isso, acrescenta ele, “as variações recentes da demanda agregada, que teve queda no primeiro trimestre do ano, refletem melhor o desempenho recente da economia que a evolução do PIB”. Com a retração da demanda total, que soma consumo das famílias e dos governos e os investimentos, a atividade econômica continuaria em marcha à ré.

Balanço

  • Ao observar a série de dados das contas nacionais (ou seja, sobre o PIB), a partir de 2015, Braga aponta “um padrão sazonal bem definido”, com redução dos estoques no último trimestre de cada período, “como forma de atender ao aumento do consumo caraterístico do final do ano”, e recomposição dos níveis dos estoques nos trimestres seguintes, “principalmente no primeiro”.
  • Esse padrão, no entanto, foi rompido em 2020, em “mais um dos efeitos não antecipados da pandemia do coronavírus”.Ao longo do ano passado, os investimentos em estoques sofreram baixas também no segundo e no terceiro trimestres, com tombo mais forte do que nos anos anteriores na último trimestre. Para comparação, a queda entre outubro e dezembro de 2020 correspondeu a 3,4% do PIB trimestral, diante de 2,2% em igual intervalo de 2019 e 2,9% em 2018.
  • Essa evolução, prossegue Braga, indica que, se excluída a variação de estoques, a demanda agregada (consumo das famílias e dos governos, mais investimentos) teria sofrido queda menos acentuada do que a produção – tendência observada também nas sondagens da Confederação Nacional da Indústria (CNI). Na estimativa do economista, a demanda teria recuado 3,4% diante do tombo de 4,1% registrado pelo PIB.
  • Os sinais surgem invertidos no primeiro trimestre deste ano, com alta recorde dos estoques e crescimento maior do PIB em relação à demanda.  Para comparação, os estoques corresponderam a 4,1% do PIB no primeiro trimestre deste ano, frente a 1,9% em 2020 e 1,6% em 2019, saindo de 1,7% em 2017 e 2015.
  • “Sem a recomposição de estoques além da usual para o período, de forma que o PIB acompanhasse a evolução da demanda agregada, o PIB teria caído 0,4%, em relação ao primeiro trimestre de 2020, e não crescido 1,0%”, estima Braga. Na comparação com o quarto trimestre de 2020, haveria recuo de 0,3%, não o aumento de 1,2% divulgado.
  • “Entendemos, então, que a queda dessazonalizada da demanda agregada, no primeiro trimestre deste ano, indica melhor o momento da economia, bem como suas perspectivas, já que o crescimento do PIB, inflado pela recuperação de estoques, está refletindo com atraso os fortes estímulos fiscais ocorridos ao longo de 2020”, entende Braga.
  • O economista também refez as séries dessazonalizadas e chegou a uma estimativa de perda mais intensa para a demanda na passagem do quarto trimestre de 2020 para o primeiro deste ano, projetando queda de 0,9% no período. O comportamento da demanda durante a pandemia sugere, ainda, que a “sobra estatística” (ou carregamento estatístico) para 2021 estaria na faixa de 4,2% (diante de 4,9% calculados com base nas séries dessazonalizadas do IBGE).
  • Isso significa que, caso a economia mantenha-se estagnada daqui até o final do ano, o PIB ainda assim cresceria 4,9% e este foi o fator que levou os mercados a recalibrarem suas apostas para a economia neste ano, passando a esperar crescimento de 5,5%. Se o cálculo de Braga estiver correto, tanto o “carregamento estatístico” quanto as projeções de mercado estariam superestimados.