“Regimes especiais” de tributação geram perdas de quase R$ 204 bi
Recheado de brechas, exceções e “regimes especiais”, o sistema de tributação das pessoas jurídicas no Brasil tem consolidado privilégios e produzido injustiças e iniquidade fiscal, agravando a má distribuição da renda histórica no País e ineficiências em cadeia na economia, ao comprometer a competitividade das empresas, como descreve, com profusão de dados, o pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) Sergio Wulff Gobetti, atualmente cedido à Secretaria de Fazenda do Rio Grande do Sul.
O estudo “Ineficiências e iniquidades do Imposto de Renda: Da agenda negligenciada para a próxima etapa da reforma tributária”, divulgado na quinta-feira, 10, pelo site do instituto, registra, entre outras estimativas, que a Receita Federal do Brasil (RFB) deixa de arrecadar algo como R$ 203,68 bilhões por conta da baixa tributação efetivamente paga pelas empresas incluídas no Simples e para aquelas que recolhem o Imposto de Renda sobre Pessoas Jurídicas (IRPJ) e a Contribuição sobre o Lucro Líquido (CSLL) com base no lucro presumido. A valores de 2019, a perda de receitas corresponde a 2,76% do Produto Interno Bruto (PIB).
Na média entre 2015 e 2019, as empresas registradas no Simples, com faturamento anual de até R$ 4,8 milhões, pagaram uma alíquota efetiva de apenas 3,3%, quer dizer um décimo da alíquota de 34% na soma do IRPJ com a CSLL, privando o Estado de uma arrecadação estimada por Gobetti em R$ 87,749 bilhões apenas em 2019. As empresas enquadradas no regime de lucro presumido, com receitas de até R$ 78,0 milhões por ano, tiveram a alíquota reduzida para 10,6% em média. Em comparação com a alíquota normal, aquelas empresas foram beneficiadas com uma redução de impostos equivalente a R$ 115,930 bilhões.
Na contramão
Mesmo as empresas submetidas ao regime de lucro real para cálculo do IRPJ e da CSLL, mostra ainda o trabalho, em tese submetidas a uma alíquota nominal de 34%, estiveram efetivamente sujeitas a uma alíquota de 24,3%. O acúmulo de penduricalhos nesta área coloca o Brasil na contramão de uma maioria de países membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Trinta e um entre 38 países da OCDE, mostra Gobetti, “reduziram suas alíquotas de tributação da renda corporativa entre 2003 e 2023, embora mais recentemente esse movimento tenha sido atenuado e até revertido em alguns lugares, como Reino Unido, Turquia e Colômbia”.
Na média, a tributação sobre lucro corporativo recuou de 29,54% para 23,63% entre 2003 e 2023, num movimento compensado “pela ampliação da base de lucro tributável, via redução de benefícios fiscais e maiores restrições sobre as regras de compensação de prejuízos e dedutibilidade de despesas não operacionais”. Aqueles países, em resumo, reforça o pesquisador, “buscaram ampliar e tornar mais progressiva a tributação da renda do capital em nível pessoal”. Houve aumento na cobrança de impostos sobre lucros e dividendos recebidos pela pessoa física e por acionistas em 24 países da OCDE, com alívio na carga fiscal imposta às empresas, opções sugeridas por Gobetti para a reforma do IRPJ aqui dentro.
Balanço
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O grande desafio, registra Gobetti, está precisamente em promover uma reforma que permita, simultaneamente, aprimorar a eficiência e trazer maior equidade para o sistema tributário brasileiro. Na sua visão, de todo modo, considerando o “acúmulo de distorções encontradas nesse regime, que geram tanto injustiça e iniquidades quanto condutas e estímulos ineficientes do ponto de vista econômico, esses dois objetivos, embora aparentemente contraditórios, se tornam perfeitamente complementares”.
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Gobetti reconhece os riscos e obstáculos à implantação de uma reforma naquela direção, dada a força dos lobbies corporativos e políticos. Mas argumenta que o Brasil não pode “se manter imobilizado”, principalmente “em um contexto de competição internacional em que a maioria dos países desenvolvidos do mundo reduziu nas duas últimas décadas suas alíquotas sobre o lucro empresarial ao mesmo tempo em que buscou ampliar suas bases de tributação e, em alguns casos, também ampliar a tributação ao nível das pessoas físicas”.
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Reconhecidamente, a reforma do IRPJ e da CSLL, com ajustes nos parâmetros estabelecidos para a cobrança daqueles tributos nos regimes do Simples e de lucro presumido, limites para dedução de juros sobre o capital próprio, que isoladamente respondeu pela perda de R$ 23,776 bilhões apenas em 2023, e a volta da taxação sobre lucros e dividendos, abandonada pelo País nos anos 1990, não permitirá recuperar todas as duas centenas de bilhões apropriados pelas corporações.
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Mas é possível construir um projeto de reforma capaz de reduzir as brechas para o planejamento tributário e para a elisão de receitas pelas empresas. Um dos caminhos sugeridos por Gobetti contempla a “adoção de uma espécie de princípio de competência na tributação dos dividendos, ou seja, a previsão de que os lucros sejam tributados sempre que não haja reinvestimento, isto é, sempre que sejam distribuídos ou se mantenham retidos na empresa, com ou sem integralização formal ao capital social”. Seria uma solução muito próxima daquela adotada pela Noruega, “mas adaptado às particularidades dos regimes especiais de tributação do Brasil”.
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A ideia é evitar ou pelo menos “reduzir riscos de que as empresas não sujeitas à lei das sociedades anônimas (como Simples e lucro presumido) fujam da tributação via retenção total de seus lucros e estratégias de distribuição disfarçada”. Gobetti relaciona casos de “planejamento tributário abusivo” no estudo e que poderiam pôr a perder os benefícios da reforma proposta, que defende ainda a redução na alíquota atualmente cobrada das empresas.
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“Na atualidade”, relata ele, “muitos conglomerados são formados por empresas que estão enquadradas no lucro real e outras no lucro presumido”, com “evidências de que, por trás dessa organização empresarial”, persistam estratégias para reduzir impostos indevidamente, com o lançamento do “máximo de custos nas unidades submetidas ao lucro real”, registrando “o máximo de faturamento possível nas unidades sujeitas ao lucro presumido” [onde os impostos incidem sobre um lucro previamente estimado em 15,8%].
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“O enxugamento desses mecanismos poderia abrir espaço para a redução das alíquotas de IRPJ ou CSLL, tornando a economia brasileira mais atrativa para investidores estrangeiros e mais equânime entre as empresas nacionais”, sustenta o pesquisador.
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