Sobram bilhões, mas o governo quebrou (dizem as manchetes)

Publicado por: Lauro Veiga Filho | Postado em: 06 de dezembro de 2022

“Estrangulado” pela falta de recursos, consequência dos gastos excessivos realizados no período pré-eleitoral, o governo teria literalmente quebrado neste final de ano, como dizem as manchetes e repetem analistas e economistas mais identificados com correntes mais conservadoras do pensamento econômico, que chegaram a desenvolver certa “tara” fiscalista ao longo das últimas décadas, agravada aparentemente depois de 30 de outubro passado. Pior ainda, o famigerado “risco fiscal”, que dizer, o risco fantasioso de o governo não honrar os pagamentos de juros e amortizações de sua dívida, levando a uma escalada do dólar e da inflação, em consequência, tenderia a comprometer as ações do governo em 2023, desestabilizando a administração que sequer tomou posse ainda.

Começando pelo começo, a primeira proposição, a tal falta de recursos, é falsa e tem sido alimentada propositadamente para que os recursos do orçamento da União continuem sendo açambarcados pelos setores de sempre, perpetuando o que a procuradora Élida Graziane Pinto, do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, tem qualificado como a “balcanização” do mesmo. Segundo as manchetes, o governo federal teria apenas R$ 2,4 bilhões para bancar despesas discricionárias (quer dizer, de livre provisão pelos ordenadores federais de gastos) até o final do ano, aproximadamente um décimo dos recursos que seriam necessários.

O desgoverno ainda instalado em Brasília de fato realizou gastos “extraordinários” às vésperas das eleições, com autorização (ou cumplicidade) do Congresso, contrariando veto imposto pela legislação eleitoral. A mais recente delas, já na reta final da campanha, abriu espaço para uma despesa extra de R$ 41,2 bilhões. Mas esses desembolsos, embora possam vir a ser qualificados como ilegais (e parecem ser), não “quebraram” o Estado brasileiro. Basta relembrar que, nas contas da Secretaria do Tesouro Nacional (STN), o governo central acumulava, até outubro, um superávit de R$ 66,8 bilhões antes do pagamento de juros – às custas do achatamento de despesas e de receitas não recorrentes, que não deverão se repetir no próximo ano, é verdade.

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Política de desmonte

A grita fiscalista tem servido para ajudar a equipe do ministro dos paraísos fiscais, para onde desviou US$ 9,55 milhões de sua fortuna para não pagar impostos, a cancelar a transferência de recursos para saúde e educação principalmente, atingindo mesmo despesas já autorizadas (empenhadas), além das áreas de meio ambiente, da Justiça e da Polícia Federal, entre outros setores da administração pública, ameaçando a continuidade de suas atividades rotineiras e de projetos de maior alcance em todas as áreas do serviço público. Na verdade, os cortes fazem parte de uma política de desmonte perseguida desde o governo Temer, quando foi instituído o moribundo “teto de gastos”, já detonado por sucessivos “estouros” patrocinados pelo desgoverno atual, num total de R$ 794,9 bilhões apenas entre 2019 e 2022, segundo levantamento do economista Bráulio Borges, do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (Ibre/FGV).

Balanço

  • A questão é que, mesmo quando há sobra de recursos, o teto de gastos impõe um “contingenciamento” das despesas, que não podem crescer mais do que a inflação ao longo do ano. Portanto, ainda que a arrecadação cresça muito acima do esperado, como agora, o governo não pode usar o dinheiro excedente para fazer frente a gastos, ainda que urgentes e plenamente justos, como campanhas de vacinação e compra de vacinas. O “teto de gastos” acabou se tornando uma ferramenta para achatar as despesas, contingenciando-as ainda que sobre dinheiro para sua realização.
  • Em parte, o crescimento das despesas discricionárias neste ano deveu-se a desembolsos realizados na fase anterior às eleições. Entre janeiro e outubro deste ano, a valores atualizados com base no Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), aqueles gastos somaram praticamente R$ 123,678 bilhões, correspondendo a um crescimento de 35,31% frente a pouco menos de R$ 91,401 bilhões nos mesmos 10 meses do ano passado (R$ 32,277 bilhões a mais).
  • O grande avanço dos gastos discricionários, no entanto, ficou concentrado no período entre junho e agosto. No trimestre em questão, foram realizados desembolsos ligeiramente superiores a R$ 67,599 bilhões, correspondendo a 54,66% de toda a despesa discricionária realizada em 10 meses. Em idêntico período do ano passado, esse tipo de gasto havia somado R$ 36,089 bilhões, representando 39,48% do total acumulado até outubro de 2021.
  • Comparando os dois períodos, a despesa discricionária registrou salto de 87,31% em termos reais. Quer dizer, foram gastos R$ 31,510 bilhões a mais no trimestre encerrado em agosto deste ano. Mais claramente, as despesas realizadas em apenas três meses explicaram 97,63% do crescimento acumulado em todo o período (janeiro a outubro deste ano frente aos mesmos meses de 2021).
  • Essa escalada, na verdade, não evitou que ainda assim “sobrassem” recursos naqueles 10 meses – antes do pagamento de juros, ressalte-se. Mas o saldo primário reflete apenas parcialmente a situação fiscal. A sobra de dinheiro é mais ampla e suficiente para assegurar a transição de governo e mais além, afastando a ameaça de um improvável “calote” na dívida pública, como demonstrou recentemente em entrevista ao jornal Estado de São Paulo o economista José Roberto Afonso, considerado um dos “pais” da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) e que nada tem de heterodoxo.
  • O Tesouro mantém no Banco Central (BC) uma “conta única”, que inclui sobras de caixa, recursos decorrentes da venda de títulos públicos, recursos em circulação no sistema financeiro e outras disponibilidades. Essas “sobras” devem ser utilizadas na gestão da dívida pública, quer dizer, na compra de papéis, no pagamento de juros e amortizações.
  • A conta única somava pouco mais de R$ 1,595 trilhão em outubro deste ano. Além desses valores, o dinheiro do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) na rede bancária chegava a R$ 366,415 bilhões. Na soma entre as duas contas, o governo tinha a sua disposição nada menos do que R$ 1,962 trilhão, em números arredondados, algo como 20,35% do Produto Interno Bruto (PIB) e praticamente 27% de toda a dívida pública do governo geral (que inclui a União, os governos regionais e suas estatais).