“Tarifaço” disfarçado mostra que País já está em racionamento

Publicado por: Lauro Veiga Filho | Postado em: 30 de junho de 2021
S11 Brasília DF 17/03/2015 ECONOMIA /NEGOCIOS ANEEL Fachada da sede da Agência Nacional de Energia Elétrica, em Brasília DF FOTO DIVULGAÇÃO

O Brasil não está sob ameaça de um racionamento de energia. Para todos os efeitos, o País já se encontra em pleno racionamento a partir da decisão anunciada ontem pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), editando praticamente um “tarifaço” disfarçado na conta de luz a partir de julho. O cenário parece ser muito mais grave e complicado do que o governo gostaria de admitir e, por isso, as medidas adotadas até aqui tentam levar com a barriga a crise gerada pela piora na hidrologia, o que reduziu a níveis críticos os reservatórios das principais hidroelétricas da região Centro-Sul ainda no começo da estação seca.

Crises desse calibre não são geradas do dia para a noite, obviamente. Há anos especialistas do setor têm alertado para problemas para todo o sistema de geração, transmissão e distribuição de energia em função de um histórico mais recente de baixa pluviometria, o que não vinha permitindo que as hidroelétricas pudessem recompor devidamente seus reservatórios. Uma combinação de poucas chuvas ao longo do verão e início de um período extremamente seco, como agora, tenderia a empurrar o setor para uma crise de abastecimento. O governo desconsiderou os alertas e, neste momento, por motivos meramente políticos, tem apostado na alta das tarifas para tentar desestimular o consumo de energia e assim permitir que o sistema consiga atravessar o período de seca sem complicações ainda mais severas.

A Aneel anunciou um aumento de estonteantes 52,08% sobre o valor acrescido à conta de energia pela bandeira vermelha 2. O regime de bandeiras foi criado após a crise que produziu o racionamento de energia em 2001, com o objetivo de cobrir os custos muito mais elevados da geração de usinas térmicas (a diesel, óleo combustível, gás, biomassas em geral), que entram na geração para reforçar a oferta de energia e assegurar o suprimento do mercado, evitando novos racionamentos. Esse custo extra é pago pelo consumidor, por meio das tais bandeiras. Ontem, a bandeira vermelha 2 subiu de R$ 6,24 para R$ 9,49 a cada 100 quilowatts. O aumento será aplicado às tarifas residenciais a partir de julho.

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Conta salgada

Isso não significa que a conta de luz saltará na mesma proporção. A bandeira vermelha corresponde a uma parte da fatura total. Alguns cálculos estimam que a tarefa cheia deverá subir algo em torno de 8,1% em julho. De qualquer forma, o consumidor sentirá no bolso. A energia residencial teve um peso de 4,24% no cálculo do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) de maio. Neste caso, apenas a energia poderá responder por uma elevação de 0,34 pontos de porcentagem sobre a taxa geral de inflação. Em maio, com alta de 5,31%, a energia havia respondido por 27,5% do IPCA mensal. Diante das projeções para julho, a alta da energia tenderá a responder por quase metade do índice esperado.

Balanço

  • O risco de novos aumentos não está descartado. Dentro da Aneel, houve quem apresentasse a proposta de um aumento ainda maior para a bandeira vermelha 2, aplicada atualmente em função dos níveis muito baixos dos reservatórios e do uso mais intensivo das usinas térmicas. Chegou-se a discutir a possibilidade de elevar a bandeira para R$ 11,50 (a cada 100 KW), o que teria correspondido a um salto de 84,29%.
  • De acordo com o economista Rafael Cagnin, do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (Iedi), o aumento do custo da energia tende de fato a desacelerar o consumo, mas corresponde, ao mesmo tempo a “uma corrosão inesperada da demanda”, reforçada pelas altas já ocorridas dos combustíveis e do gás de cozinha. As altas de custos nesta área, observa Cagnin, deixam os orçamentos familiares ainda mais pressionados porque são despesas “difíceis de serem comprimidas”. E terminam “retirando dinamismo” da demanda geral e, portanto, da atividade econômica em seu conjunto.
  • A questão é que o aumento das despesas com energia não é um ponto isolado no cenário econômico. Ele vem num momento de desemprego ainda muito elevado, perdas de renda para as famílias de trabalhadores e de elevação dos juros.
  • Em maio deste ano, o Sistema Nacional de Meteorologia apontou que a bacia do Rio Paraná, responsável por mais da metade do armazenamento de água para geração de energia no País, havia entrado em “emergência hídrica”. O governo esperou até segunda-feira, dia 28, para publicar, em edição extraordinária do Diário Oficial da União, a Medida Provisória 1055/21 que, entre outras definições, cria a Câmara de Regras Excepcionais para Gestão Hidroenergética (Creg).
  • A câmara, que deverá funcionar até o final de dezembro deste ano, em princípio, será formada pelos titulares dos ministérios de Minas e Energia(que presidirá da Creg), da Economia, da Infraestrutura, da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, do Meio Ambiente; e do Desenvolvimento Regional. Sua missão será adotar medidas emergenciais para enfrentar o que tem sido qualificado como a pior crise de escassez hídrica em 91 anos, assegurando o suprimento de energia. A Creg, hierarquicamente, estará acima do Comitê de Monitoramento do Setor Elétrico (CMSE), do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) e da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE). Caberá a ela definir as vazões e os usos da água armazenada, com prioridade para a geração de eletricidade.
  • As medidas tomadas até aqui e a própria criação da câmara, que remete ao estabelecimento da Câmara de Gestão da Crise de Energia ainda no governo FHC para administrar o racionamento e a recuperação dos reservatórios, deixam claro que o governo e seu ministro de Minas e Energia não têm sido transparentes na comunicação da crise à sociedade, que continua virtualmente às escuras e corre ainda risco de se ver sem eletricidade.