Abandonados e sem assistência, crianças venezuelanas choram com fome em casa de Anápolis

Jornal O Hoje flagrou extrema pobreza em casa com 37 venezuelanos em residência alagada por tempestade

Postado em: 04-12-2021 às 08h25
Por: Redação
Imagem Ilustrando a Notícia: Abandonados e sem assistência, crianças venezuelanas choram com fome em casa de Anápolis
Jornal O Hoje flagrou extrema pobreza em casa com 37 venezuelanos em residência alagada por tempestade | Foto: Yago Sales

Por Yago Sales 

 “Tengo hambre”, reclama, com a mão na barriga, uma menina de três anos. Outra criança segura a calça do repórter e repete a frase. Depois outra. E depois outra. São várias vozes, no espanhol venezuelano ou na língua ininteligível da etnia Warao, que suplicam por algo elementar: comida. 

Os adultos, constrangidos, também gostariam de dizer que estão com fome, mas preferem apenas ouvir a cacica Mírian Perez, 36 anos, falar por eles. Ela é a voz daqueles que não aprenderam a dizer nem em espanhol nem em português. Ali, alguns falam apenas o dialeto da etnia indígena da geografia que eles foram obrigados a abandonar nos campos e florestas da Venezuela. Fugiram, pensaram, da fome e miséria. Os 37 fugitivos saíram da conturbada Venezuela de Nicolás Maduro e caíram no abandonado Brasil de Jair Bolsonaro.

Continua após a publicidade

De dia, pedem nos sinaleiros da Avenida Brasil, em Anápolis, segurando cartazes e placas de isopor com pedidos de ajuda com frases que misturam português e espanhol. À noite, dividem o pouco que algumas pessoas lhe dão para garantir a chance de sobrevivência até o dia seguinte. Essa é a vida, ou sobrevida, desses refugiados dentro de uma casa de quatro cômodos onde tudo vira quarto para suportar a quantidade de gente. 

Eles se viram em redes com as cores da bandeira venezuelana grudadas em ganchos fincados nas paredes verdes, brancas e sujas de barro. Outros dormem em colchões da espessura de dois dedos. Na matemática financeira, o custo mensal para mantê-los sob um teto – aluguel, água e energia – ultrapassa R$1.800. O que ganham pedindo oferece, nem todo dia, pelo menos uma refeição diária. Às vezes mingau de mandioca, água, sal e farinha de trigo.   

Em Anápolis, é comum ouvir comentários genéricos sobre os venezuelanos nas ruas. Mas, por dentro de onde passam a maioria do tempo, sentindo o odor do esgoto que escorre do vaso sanitário, olhando de perto os olhos da fome, ouvindo os pedidos de comida, a gente os torna menos estrangeiros. Por dentro, se tornam mais da gente. O fogão de quatro bocas – que não alimentam os 37 estômagos como todo ser humano deveria – está com o gás para esvaziar num país com o preço do utensílio a R$110. Um fogão industrial com grossas camadas de gordura poderá, quando tiver comida, dar alguma dignidade. 

Na casa abarrotada por abandonados à própria sorte, no idioma indígena, as crianças pedem mangas que um dos adultos trouxe da rua. E mastigam. Roem os caroços e pedem mais. “No, no”, nega uma mãe, que logo cede, sob o olhar triste de outra. Uma mocinha, matriculada numa escola da região, com um português que vem aprendendo nos últimos oito meses, aparece com uma pasta, de onde a cacica retira um boleto da Saneago prestes a vencer: R$656.12. O valor assusta Mírian Perez, um dos maiores desde que chegou a Anápolis. Carregava dois filhos, o marido e dezenas de compatriotas em fuga. 

Ali, no entanto, existem outros que vivem no Brasil há três, quatro, cinco anos. “Nada muda”, diz um deles, massageando a barriga da mulher, grávida do segundo filho. A reportagem passaria pouco tempo naquela residência não fosse uma tempestade que alagou os cômodos, principalmente uma área, que também se tornou quarto mesmo com a água molhando as redes. 

O tempo todo eles falam num Deus que os tirou da Venezuela. Como Moisés no deserto, explica a Cacica, sem água nem comida, e o desespero de seu povo sem saber o que fazer, ela espera um milagre. Para ela, e ela repete muito, a presença de um jornalista poderá significar água brotando da rocha. A metáfora bíblica faz sentido. Eles não têm dinheiro para comprar galões de água. Embora haja água nas torneiras, eles não confiam. Temem que esteja contaminada. E ela volta a falar na fome. Da falta de peixe, iguaria comum ao seu povo. E volta a falar no medo de ter de enterrar uma das crianças por fome. “Tengo miedo”, diz, baixando a máscara. 

Num contrassenso natural, quase todos – principalmente os adolescentes – têm celulares Sansung com internet que conectam na rede do vizinho. Os celulares são conectados em tomadas com fios expostos e desencapados. O repórter tenta alertá-los porque crianças podem tomar choque. “El pior es la hamble”, diz a cacica. Ela, numa tristeza que apenas quem tem medo consegue expressar, mostra fotos de pessoas no celular que prometeram ajuda e nunca mais voltaram. 

Neste momento, alguns adolescentes ficam irritados com a presença do jornal. Eles não querem dar entrevista. Eles não querem aparecer em fotografias. Eles não querem promessas. Depois cedem. Eles querem comer. Eles querem beber água sem risco de contaminação. “La digninidad”, diz a mãe de uma das crianças que mastigam uma manga. 

Durante a chuva as crianças correm pelo quintal, escorregam pela cerâmica e sorriem. Não se dão conta, mas a água da chuva espalha o esgoto fétido de um cano que ligaria o vaso sanitário e uma fossa. Outras crianças, sem que nenhum adulto ordene, descem de um berço e começam a afastar a água que invade o barraco com um rodo. É possível, por meio da expressão do rosto e a falência no olhar, compreender: estão frustrados. Às vezes param de falar, pedem dinheiro ao repórter.

Uma anciã, normalmente uma pessoa mais velha da etnia, começa a chorar. Está com fome. Cedeu o que tinha para um dos netos. Aos 70 anos, aponta ao fogão enferrujado. Pega uma farinha de trigo, caça qualquer coisa nos sacos que a cacica trouxe da rua. Não encontra ingredientes para tentar ferver algo para ocupar o estômago. Não responde a nenhuma pergunta. Se irrita. Volta a chorar, observada por mais crianças, que não veem leite nem Nescau. Apenas o vazio. 

No dia seguinte, a casa está quase vazia. Os adultos e crianças se espalharam pelos sinaleiros das principais avenidas do Centro. Calados, apenas estendem a mão. Um comerciante sugere que a Prefeitura deveria dar um lugar para eles. “Um abrigo”. Mas os venezuelanos não querem. Reclamam de falta de privacidade e higiene. 

Uma mulher, num argumento xenofóbico, reclama: “Deveria colocar todo mundo num caminhão e levar de volta. Já chega desse povo aqui”. O ranço da anapolitana de 52 anos não passa nem perto do que os refugiados enfrentaram em Roraima. A cacica conta que parentes dela foram perseguidos e expulsos em Boa Vista. Se espalharam pelo País. Alguns, descendo o mapa, chegou em Anápolis. “Ciudad rica”, diz ela, apontando para um prédio. Ali é a prefeitura de Anápolis, sob o comando do prefeito Roberto Naves. A distância de pouco mais de 500 metros entre o casebre em que vivem e a sede administrativa de Anápolis não impede que o grupo de venezuelanos fiquem desassistidos. A cacique ainda reclama que servidores da prefeitura costumam manda-los para casa quando são flagrados com crianças nos sinaleiros. 

Por outro lado, a Secretaria de Integração Social, Esporte e Cultura de Anápolis garante que aborda as famílias para atender as demandas apresentadas, considerando as inúmeras especificidades e aspectos presentes em sua cultura. Sobre a orientação de mandar crianças para casa, a Secretaria esclarece que o rito é baseado no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), já que a mendicância acompanhada de crianças e adolescentes nos sinaleiros, caracterizada como trabalho infantil.

A prefeitura também ressalta que as equipes da Secretaria fizeram vários contatos para orientá-los sobre os serviços socioassistenciais do município, inclusive a oferta temporária de abrigo. Sobre a alimentação, a pasta afirma que compreende a vulnerabilidade social e que houve cadastros para que garantissem os direitos essenciais, como cadastro único.

Veja Também