Feliz Natal? Não para os invisíveis das ruas

Uma crônica sobre a vida de Márcia, Aguinaldo e os dois cães Bilu e Spike, personagens do cotidiano durante o Natal

Postado em: 25-12-2021 às 09h01
Por: Redação
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Uma crônica sobre a vida de Márcia, Aguinaldo e os dois cães Bilu e Spike, personagens do cotidiano durante o Natal | Foto: Yago Sales

Por Yago Sales

Nos 47 anos de vida de Márcia da Silva ela nunca pensou que passaria o Natal de 2021 sem um teto para receber a família com música, decoração e a ceia. “Já fiz muitos pães, leitoas e arroz com uvas passas”, lembra , ao reparar a brincadeira de Bilu e Spike, dois cães que ela cria há um ano e meio, quando ainda eram filhotes.

Durante todo o dia de sexta-feira, andou com carrinho de reciclado e estacionou, com o marido, Aguinaldo Alves.  Um  homem de 50 anos, enfermo. Ambos, sozinhos no mundo repousaram  o carrinho no canteiro central da Avenida 85, em frente dos tradicionais blocos rosados do Marista. Ali, com o gorro de Papai Noel  que encontrou na lixeira de uma loja que finalizara, naquele dia, uma campanha publicitária para a data natalina, a mulher destrincha a luta pela sobrevivência nas ruas de Goiânia.

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Nas últimas semanas, atrás de latas e papelão, foram encontrando fitas, cordões e balões quase esvaziados. “Peguei tudo e decorei meu carrinho”, diz ela, orgulhosa, com uma voz infantilizada. Enquanto comentava sobre ter sido expulsa há dois meses de um barracão pelo proprietário, por causa dos cães, e dos materiais recicláveis, o marido chega, arrastando o corpo com uma hérnia abdominal que o aleija. Mas ele recusa-se a senti-la, mesmo ao sofrer  as  dores das andanças.

Antes de mostrar as panelinhas que produz com latinhas, levanta a blusa e mostra o cinto que segura a “bolsa de carne” despencando da barriga. A hérnia.  “Dói muito, muito mesmo”. Sem documentos desde que policiais o prenderam há mais de cinco anos, ele não consegue atendimento médico. A mulher, com unhas pintadas com um vermelho, mostram uma réstia de vaidade. Descascadas com o lida, chora. “Meu Natal? não vai ter Natal. Não vamos ter dinheiro”.

Diagnosticada com bronquite asmática, Márcia desmaiou duas vezes nos últimos dias com falta de ar. “Caí e meus cachorros ficaram desesperados”. Ela conta as histórias cotidianas com voz abafada e lágrimas nos olhos. “Não é bom reclamar, mas você quer saber como vai ser o meu Natal. Mas o que é o Natal para pobre? É pegar o resto? Comer o resto?”, divaga, enquanto as nuvens do céu escurecem e as gotas d’água começam a cair.

“Bora, amor, bora Spike, bora, Bilu”, ela chama, ajeitando a caixa com os artesanatos dentro do carrinho abarrotado de papelão e latinhas. Pra onde? O repórter quer saber qual o destino da família sem Cep. “Pra qualquer lugar onde meus cachorros não molhem. Eu cuido muito bem deles, olha o tanto que são felizes”, diz,  ao olhar para Bilu, que sacode o rabo. Você é feliz? “Sou feliz quando meus bichinhos estão felizes, quando meu marido está bem, sem dor. Estou feliz quando eles não estão desprotegidos”, afirma, tocando no braço do marido, um afago de força, para o homem visivelmente abatido.

A chuva dá uma trégua. “Acho que queria falar uma coisa. Anota aí, moço”, ela começa, emocionada. “Queria apenas fazer um pedido. Não pra Papai Noel, mas para o aniversariante: Jesus”. Ela interrompe um pouco o argumento quando os cães se irritam com outros dois que estão dentro de um  Hyundai Creta Prestige branca. “Fica calmo, Bidu”, ordena, sem alterar a voz e retorna ao raciocínio. “Quero pedir para Jesus uma coisa. Acho que não é muita coisa, mas vai mudar a minha vida. Quero pedir para Jesus tocar o coração de alguém para deixar  que eu more com meus cachorros e meu marido. Não quero morar de graça. Eu consigo tirar dinheiro suficiente para pagar um aluguel”.

O marido, ajeitando o cinto que segura a hérnia, concorda. “Uma assistente social me disse uma vez em Brasília que a moradia é um direito. Mas como eu faço? Como a gente faz”? Ele, um homem que apenas pergunta, quer saber mais: “Natal deveria comover as pessoas, mas parece que tudo virou apenas comprar, comprar, comprar…”, conta.

A chuva despenca. Márcia acelera. Pressiona o corpo no pegador do carrinho e o arrasta, com força de touro, sobrevivente, brasileira, filha de Cristo. Incapaz de desistir, Márcia, contente por não estar com crise asmática, desce a Avenida 85, seguida pelo marido que rasteja puxando Spike e Bilu pelas coleiras.

Diante do drama de Márcia, Aguinaldo e seus cães,  fica uma pergunta: onde estão os homens públicos, com falatórios de inclusão, que pagam cachês a personagens vestidos com roupa branca e vermelha, distribuem argumentos e promessas, mesmo assim, pessoas continuam invisíveis diante da população e do poder público?

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