Cracolândias explodem em Goiânia sem plano de ação das autoridades

Prefeitura não tem levantamento sobre o número de usuários e moradores de rua, o que dificulta a tomada de ações de proteção social

Postado em: 18-01-2023 às 08h00
Por: Vinicius Marques
Imagem Ilustrando a Notícia: Cracolândias explodem em Goiânia sem plano de ação das autoridades
Prefeitura não tem levantamento sobre o número de usuários e moradores de rua, o que dificulta a tomada de ações de proteção social. | Foto: Vinicius Marques / O Hoje

A venda e o consumo de crack a céu aberto e a luz do dia tem sido cada vez mais rotineira em Goiânia. Há lugares fixos na Capital onde é possível encontrar moradores de rua, usuários e traficantes que, sem nenhum pudor, vendem e consomem a droga e impõe desafios para as gestões e políticas públicas e moradores das regiões. Ao menos cinco pontos na cidade são conhecidos pela venda e uso dos entorpecentes. Entre eles, a praça do Cepal, no Setor Sul, Praça da Matriz em Campinas, Rua 233, no setor Universitário, vielas da Região da 44 e no Bairro São Francisco, nas proximidades dos motéis. 

A reportagem passou uma noite entre becos e vielas da cidade com um usuário que aceitou mostrar a realidade desses locais. “Valter”, como será chamado o usuário que não pode se identificar para não sofrer represálias, tem um emprego formal e mora sozinho de aluguel. 

Embora leve uma vida normal, ele é consumidor, quase que diário, da pedra. “Antigamente eu usava cocaína. É uma droga com praticamente o mesmo efeito, a diferença é que a cocaína dura mais tempo, mas te faz sempre querer mais, da mesma forma que o crack, mas também é muito mais cara”, confessa.

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“Proibido roubar”

Na primeira parada, em um galpão abandonado entre as ruas 233 e a Marginal Botafogo, no Setor Universitário, se destaca uma placa escrita à mão. “Proibido roubar aqui, quem desobedecer, sofrerá as consequências”. A reportagem chegou por volta das 1h30 da madrugada.

O galpão tem dois andares, com várias barracas e panos, como se dividissem quartos e cômodos. As divisões tentam criar um ambiente parecido com uma casa, mas que abriga apenas quem não tem outro lugar para morar.

Uma mulher visivelmente debilitada pela droga estava deitada em um colchão na entrada no galpão, embaixo de uma escada. Ao ver a presença da reportagem e do guia, ela chama por um homem. Valter pede R$ 20 da droga e o homem sobe a escada para buscar. Nesse meio tempo, chega mais uma usuária a pé. Um veículo também se aproxima, para na rua 233 e outro cliente desce para comprar o produto.

A espera pela porção de crack levou cerca de 15 minutos. A demora aconteceu por um problema no pagamento, feito através do Pix, enquanto mais clientes se aproximavam do lugar. A apreensão só acabava com a chegada da droga. Alguns dos usuários permanecem no local para consumir, ali mesmo, enquanto outros saem por onde vieram, como o homem que parou o carro na rua.

O tempo que passamos no galpão foi suficiente para perceber que o movimento é muito grande e a venda acontece durante toda a noite e o dia no local. Informação confirmada pelos usuários que aguardavam. 

Setor Sul e rodoviária

Ainda foram visitados mais dois pontos de tráfico, sendo um na entrada da rua 91, no Setor Sul, que fica nas proximidades do Cepal e na porta da rodoviária, na entrada da viela da 44, onde os traficantes se abrigavam debaixo de uma tenda que parecia ser deles.

Valter disse que os traficantes costumam ser muito agressivos e esperam que as pessoas sejam rápidas, mas é um artifício para que passem pouca droga e o cliente não fique pedindo por mais.

Em todos esses locais há muito movimento de pessoas em situação de rua e viciados, onde criam comunidades funcionais, como um estado paralelo de pessoas abandonadas pelo poder público, invisíveis à sociedade e reflexo de uma grave crise social.

Política pública e dados sobre usuários é inexistente

Questionada a Secretaria de Desenvolvimento Humano e Social (Sedhs) disse não ter um mapeamento dos pontos de vendas de crack, também não tem política para usuário de drogas, mas que realiza ações pontuais em locais com grande concentração de pessoas em situação de rua. “Quanto aos moradores de rua, temos duas casas de acolhida (mulher e famílias/ homens e idosos) que é feito recebimento de forma espontânea dos moradores de rua. Equipes SEAS (Serviço especializado em Abordagem Social) 24 horas. Atendem denúncias e andam nos locais de maior fluxo com moradores”, afirma a assessoria da pasta.

Em relação aos usuários de drogas e tráfico, a pasta afirma que não pode atuar e que é um problema de polícia. Em algumas ações, a SEDHS é convidada a participar, quando há moradores de rua para conversar sobre as casas de Acolhida e se querem sair das ruas. O Acolhimento não é feito de forma compulsória”, aponta a assessoria da pasta.

Policiamento é através de denúncias de crimes

Conforme apurado com o comandante da Guarda Civil Metropolitana (GCM) Juarez Júnior, pouco pode ser feito em relação ao crescimento das cracolândias em Goiânia. “A polícia faz o trabalho de acompanhamento, quando solicitado, dos assistentes sociais na região, mas só pode tomar alguma ação em caso de denúncias. Da nossa parte fazemos o acompanhamento sempre que a secretaria de assistência social solicitar apoio. Desde o início da pandemia está proibido realizar qualquer ação que não seja acompanhada dos órgãos de acolhimento dessa população vulnerável e só realizamos atendimentos que tenham cunho criminal e quando cai por denúncia através do número de emergência 153”, afirma Juarez.

Guarda Mirim

A GCM tem um projeto da Diretoria de políticas sobre drogas, coordenado pelo servidor Márcio Lourenço Coelho de Menezes, que atua na prevenção de uso de drogas e assistência familiar de crianças em regiões de vulnerabilidade social. “O projeto Guarda Mirim, é apenas um dos trabalhos realizados para tentar conter o uso de drogas desde a infância e tirar das mãos de traficantes crianças que poderiam ser usadas para o tráfico ou serem vítimas de traumas e violências”. explica Menezes.

No projeto hoje estão matriculadas aproximadamente 200 crianças que são assistidas diariamente com aulas de civismo, cidadania, com projetos de reforço escolar, com assistência social, práticas esportivas e visa criar cidadãos que façam a diferença na comunidade. O programa é realizado em turnos opostos ao horário escolar em unidades no Recanto do Bosque no Jardim Curitiba, Setor Orienteville e no Jardim do Cerrado.

O coordenador do projeto ainda argumenta que a Guarda Mirim visa cuidar de crianças para que não sofram violência em casa ou nas suas comunidades, visando evitar que sofram traumas. “75% das pessoas que vivem em situação de rua hoje, são pessoas que foram vítimas de traumas, principalmente de violência dentro de casa, essas pessoas podem até querer se tratar e se livrar do vício, mas temem a volta pra casa e continuar sofrendo a violência que as levou pra rua”.

Márcio ainda explica que faz um trabalho em conjunto com a Universidade Federal de Goiás (UFG), a Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC), Polícia civil, Câmara Municipal, terceiro setor (comunidades terapêuticas), secretaria de educação e secretaria de saúde em prol de buscar ajudar pessoas em situação de rua ou usuários de drogas. 

O projeto é uma ação integrada que visa melhorar a vida dessas pessoas. “Nós trabalhamos em uma ação integrada, não é possível transferir a responsabilidade do cuidado de pessoas em situação de drogadição para a família ou para a polícia ou para a política. O trabalho deve ser realizado com toda a sociedade, deve ser feito em uma base sólida e não visto como um problema de segurança pública, é muito mais do que prender um traficante, é tratar a sociedade”, argumenta Menezes.

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