Projeto de lei usa diversidade como bode expiatório da Educação

Termo ideologia de gênero está na boca dos principais políticos da extrema direita

Postado em: 23-01-2023 às 08h00
Por: Everton Antunes
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Termo ideologia de gênero está na boca dos principais políticos da extrema direita. | Foto: Reprodução

De tempos em tempos, como que movido pela necessidade de encontrar um bode expiatório sobre o qual se despeja o ódio e preconceito da sociedade, cria-se um rótulo para identificar o inimigo em comum de toda a população. Algo que não se sabe ao certo o que é, mas que apresentaria riscos ao coletivo. Desta vez, coube à ideologia de gênero representar esta ameaça.

No dia 24 de agosto, o plenário da Assembleia Legislativa de Goiás (Alego) votou a favor do Projeto de Lei nº 994/19 – cuja autoria é do pastor e deputado estadual Henrique César (PSC) –, que prevê a proibição dessa chamada “ideologia de gênero” nas escolas de Goiás. O PL levantou críticas da Defensoria Pública do Estado (DPE-GO), do Conselho Estadual de Educação (CEE) e do Ministério Público de Goiás (MPGO). 

Em amplo consenso de autoridades do direito, educação e ciências sociais, a ideologia de gênero nada mais é do que a deturpação de um conceito, “não tem sustentação”. Entretanto, Luciana Dias, antropóloga e secretária de Inclusão da UFG, orienta que “é necessário reconhecer a sua existência, enquanto noção, para promover um enfrentamento”.  

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Origem

Em artigo, o pós-doutor em direitos humanos e cidadania pela UnB Rogério Diniz Junqueira delineia o surgimento do termo ideologia de gênero, hoje em voga nos discursos da extrema-direita. Segundo ele, o termo se originou em meados da década de 90 e, desde então, ganhou a adesão de autoridades religiosas e políticas ao redor do mundo. 

Para ele, na ocasião de discussões fomentadas pela ONU, entre 1994 e 1995, ocorreu forte reação do Vaticano – que buscava formas de manter a sua influência e poder – ao teor progressista dos debates realizados nestas conferências. Desde então, membros do clero e alas conservadoras da sociedade apoiam-se em retóricas que condenam a população LGBTQIAP+ e os direitos das mulheres.

Junqueira argumenta que não há consenso sobre a origem exata do termo. No entanto, em 1998, pela primeira vez em um documento eclesiástico, o bispo Óscar Alzamora Revoredo utilizou o termo. O pós-doutor reflete, neste mesmo artigo, o conceito de ideologia de gênero: de que haveria uma doutrinação que visa subverter os conceitos de família e a sexualidade das crianças, por meio do ensino.

Gênero

Ideologia e gênero: “Essas duas categorias, de maneira combinada, não fazem sentido e não têm sustentação conceitual que dê conta de garantir essa combinação”, enfatiza a antropóloga Luciana Dias. Para ela, a tentativa de aliar o conceito de gênero à doutrinação é falha e sem qualquer amparo teórico. 

Sexo refere-se ao aspecto biológico e às genitálias que distinguem o macho da fêmea. O gênero, por outro lado, diz respeito à construção do masculino e do feminino em sociedade, mediante expectativas e construções sociais. Por exemplo, convenciona-se socialmente que a cor azul é associada ao homem; enquanto que a cor rosa, à mulher.

Na visão da antropóloga, a partir do momento que a noção de ideologia de gênero ganha força, surgem processos autoritários e violentos à diversidade de gênero no Brasil. Ainda de acordo com Dias, é dever do Estado, por meio de políticas públicas educacionais, garantir um ensino antidiscriminatório, de combate ao machismo e à homofobia. 

Inconstitucional

A advogada Tatiana Bronzato, coordenadora do Núcleo Especializado de Defesa e Promoção dos Direitos da Mulher (Nudem) da DPE-GO, aponta para a inconstitucionalidade do PL. “Quem tem competência legislativa para tratar sobre diretrizes e bases da educação é a União Federal, o Congresso Nacional ou o Presidente da República”, explica. 

Além disso, a advogada alerta sobre o desrespeito às leis já estabelecidas: o Estatuto da Juventude, a Lei Maria da Penha e Convenções Internacionais de Direitos Humanos aos quais o Brasil se associa. Ao contrário da proposição do pastor Henrique César, “tanto tratados internacionais quanto essas legislações ordinárias preveem a abordagem de gênero no ensino”, reforça Bronzato.

A liberdade de cátedra – que estabelece o livre ensino e aprendizado, ou seja, sem quaisquer impedimentos – é prejudicada por esta lei, de acordo com a advogada. Para ela, deixar gênero e sexualidade de fora da discussão escolar pode ser denominado, do ponto de vista jurídico, “retrocesso social”.

Política

Segundo Gláucia Teodoro – professora e, em 2019, relatora de parecer contrário do CEE ao projeto –, os preconceitos direcionados à população LGBTQIAP+ e às mulheres não estão relegados somente a um lado do espectro político-ideológico – isto é, esquerda e direita. No entanto, “numa visão mais conservadora, [o preconceito] está introjetado no dia a dia e na prioridade das políticas”, observa. 

No Brasil, a ideologia de gênero surge no contexto político a partir de 2013 e ganha força em 2015 – paralela ao surgimento de tendências antidemocráticas –, conforme avalia a antropóloga. Dias reforça o caráter moralista e “falsamente cristão” dessa narrativa, que visa provocar uma espécie de medo e paralisia coletiva.

Ainda segundo Dias, o alinhamento político ao ultraconservadorismo tem o objetivo de “consolidar uma sociedade hierarquizada, discriminatória e que, de fato, garanta os privilégios que essa força política já tem e resguarda durante décadas”. Ela também prevê que esse interesse político baseia-se no desrespeito aos direitos humanos e “não trabalha em prol da justiça e igualdade sociais”.

Educação

Deixar de discutir sobre educação sexual e gênero nas escolas é, na opinião da professora Gláucia Teodoro, uma grande perda, uma vez que problemas como as Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs) e a gravidez precoce podem ser evitadas por meio do ensino. A professora ressalta: “temos que tratar esses assuntos sem preconceito, discutir o ser humano na sua integralidade”.

O papel da escola – nas visões da professora, antropóloga e advogada – resulta em um denominador comum. No ambiente de ensino, é possível identificar potenciais casos de estupro e abuso infantil nos lares, já que essas ocorrências são tratadas como tabu dentro de casa e os professores são capazes de identificar comportamentos distintos na criança ou adolescente vítima da violência sexual. 

Além da conscientização dos estudantes sobre os métodos contraceptivos e o assédio, é responsabilidade da escola garantir a discussão sobre gênero e sexualidade de forma a garantir o ensino em todas as suas dimensões, do ponto vista de Luciana Dias. Já para a professora, é necessário retomar essas discussões na escola sem a conotação atribuída por “conservadores fundamentalistas”.

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