Lei garante a distribuição gratuita de canabidiol

O medicamento tem eficácia comprovada no tratamento de diversas doenças como fibromialgia, Alzheimer, TDAH, epilepsia e dores crônicas

Postado em: 22-05-2023 às 08h30
Por: Larissa Oliveira
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O medicamento tem eficácia comprovada no tratamento de diversas doenças como fibromialgia, Alzheimer, TDAH, epilepsia e dores crônicas. | Foto: iStock

O Governo do Estado de Goiás sanciona lei n° 0104/23, que garante o fornecimento gratuito de medicamentos à base de canabidiol. Essencial para o tratamento de diversas doenças, a substância derivada da Cannabis Sativa começará a ser distribuída pelo Sistema Único de Saúde (SUS) no prazo de 90 dias, quando a lei deve entrar em vigor a contar do dia 18 de maio. A nova sanção prevê que o poder público adquira os fármacos de empresas nacionais e celebre convênios com organizações sem fins lucrativos que representam os pacientes.

Dessa forma, serão valorizadas as entidades brasileiras que possuem autorização legal para o cultivo e manipulação de plantas do gênero Cannabis para fins medicinais. Segundo a lei, elas devem ser, preferencialmente, sem fins lucrativos. Além disso, o poder público deve promover campanhas, fóruns, seminários, simpósios e congressos para divulgar a terapêutica canábica à população em geral e aos profissionais de saúde. Outro tópico importante da lei é sobre a produção nacional desses medicamentos. 

Apesar do uso medicinal da planta já ser autorizado por meio de medida judicial e prescrição médica, a maior parte da população não tem acesso. Os medicamentos são, em sua maioria, importados e possuem preços proibitivos, tornando-os inacessíveis. Como as pessoas que buscam o tratamento canábico são aquelas que já não reagem aos tratamentos convencionais, a lei argumenta que os fármacos à base de Cannabis sejam produzidos na Indústria Química do Estado de Goiás (Iquego).

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Cannabis

Alguns chamam de chá, outros de erva ou ganja, mas também já foi conhecida por diamba e até fumo d’Angola. São inúmeras denominações durante os milhares de anos de existência de uma planta cujo nome científico é Cannabis Sativa. Os registros de seu uso datam de até quatro mil anos a.C. Comparado a isso, a atual política de criminalização e repressão às drogas, especificamente da maconha, é recente. A história revela que a planta sempre esteve presente na vida humana. 

O consumo de substâncias psicoativas é um fato histórico de diversas civilizações, e suas finalidades são incontáveis. Atualmente, a maconha é considerada ilícita no Brasil. Entretanto, nem sempre foi assim. O processo histórico que culminou com a proibição da Cannabis no país é datado do início do século XX. Esse paradigma proibicionista, porém, está cada vez mais questionado devido às inúmeras descobertas científicas sobre o uso terapêutico e medicinal da planta.

Preconceito

Coincidentemente, as proibições legais em relação à planta surgiram em governos ditatoriais e militares. Em 1935, o Ministro das Relações Exteriores emitiu um ofício ao Ministro da Educação e da Saúde. Segundo o mestre em história Jonatas C. de Carvalho, o documento foi intitulado como “Proposta de sistematização do serviço repressivo”. A partir da justificativa de “salvação nacional”, criou-se a Comissão Nacional de Fiscalização de Entorpecentes (CNFE). 

Essa mesma justificativa foi utilizada pelos militares ao apoiarem o golpe de 1930, que levou Getúlio Vargas à presidência, e pelo próprio Vargas ao implementar o regime ditatorial do Estado Novo, em 1937. O verdadeiro objetivo dessa agência era reunir todos os esforços no combate às substâncias psicoativas. “É possível afirmar que a história do proibicionismo no Brasil, o modo como este fora internalizado e a criação da CNFE estão intimamente interligados.”, afirma Jonatas Carvalho. 

Após a Segunda Guerra Mundial, os membros da CNFE passaram a ter poder de polícia e iniciou-se uma campanha nacional contra o uso recreativo da Cannabis. Para justificar o poder coercitivo e punitivo sobre os usuários, a comissão usava a mídia para fazer propagandas sobre os efeitos “nocivos” da erva. Utilizar os meios de comunicação como ferramenta de defesa das ações do governo não era difícil. À época, o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) já censurava e controlava as rádios e os jornais. 

Dessa forma, ao longo de quase quatro décadas de sua atuação e existência, a CNFE colaborou na consolidação da política proibicionista no Brasil. Além disso, contribuiu fortemente com a criação de um preconceito em relação à Cannabis, que existe até hoje no país. Foi atribuída uma correlação da erva ao crime, à violência e às diferentes populações marginalizadas da sociedade. Portanto, o estigma histórico sobre a planta se tornou o principal problema para a desmistificação do uso dela para fins terapêuticos e medicinais. 

Medicamento

Comumente, existe uma clara divergência entre o que são drogas e o que são medicamentos. Essa diferença parte de uma dicotomia maniqueísta de que os dois conceitos são opostos, em que o primeiro é negativo e o segundo é positivo. Esse conhecimento é resultado da cultura proibicionista e criminalizadora que se fortificou a partir do século passado.

Dentro do conhecimento científico, porém, drogas são substâncias que, ao serem introduzidas em um organismo vivo, modificam processos bioquímicos e resultam em mudanças fisiológicas ou comportamentais. Isso significa que os remédios são drogas. Afinal, eles são vendidos em drogarias. Portanto, a definição de droga não está diretamente relacionada à ilegalidade e nem ao prejuízo da saúde.

Entretanto, devido ao processo histórico de criminalização da maconha, a planta foi colocada na categoria de droga no sentido do senso comum. Mas os recentes estudos com a Cannabis já comprovaram suas propriedades terapêuticas e medicinais. Assim sendo, maconha é sim uma droga, mas também é medicamento, pois melhora a qualidade de vida de quem a usa.

Canabinóides

Embora os estudos sejam recentes, o tratamento com Cannabis existe e é comprovado cientificamente. Existe eficácia no tratamento de muitas doenças, como esclerose múltipla, fibromialgia, Alzheimer, Transtorno de Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH), epilepsia e dores crônicas. O Instituto de Medicina Orgânica (IMO) é uma das diversas instituições do país de apoio à pesquisa e tratamento com moléculas da planta. O instituto conta com uma equipe multidisciplinar de profissionais da saúde que vão desde médicos e enfermeiros a odontólogos, nutricionistas e fisioterapêutas.  

Segundo a cirurgiã dentista Raquel B. Pires-Lohr, que atua no IMO, o corpo humano possui um sistema chamado endocanabinóide. Ele é composto por receptores e neurotransmissores que regulam condições fisiológicas básicas como a cognição, a disposição, o apetite, o sono, o humor e as emoções. Tem se estudado que uma disfunção nesse sistema pode causar o aparecimento ou agravamento de algumas patologias. “Por isso que o tratamento com canabinóides tem gerado respostas positivas”, afirma Raquel. 

O sistema endocanabinóide foi descoberto apenas neste século e ainda é pouco estudado. Porém, já se sabe que o corpo humano produz canabinóides naturalmente. “Os canabinóides da Cannabis não intoxicam o corpo, pois são substâncias que ele já possui, eles apenas estimulam a conexão de neurônios e a transmissão de informações necessárias para o sistema nervoso central”, é o que afirma a biomédica e gestora de relacionamentos do Instituto de Medicina Orgânica (IMO), Isabela Carvalho.

Tratamento

A Cannabis Sativa, nome científico da maconha, é composta por mais de 480 fitocanabinoides, que são as moléculas vegetais que compõem a planta. Os canabinóides mais estudados e conhecidos são o Canabidiol (CBD) e o Tetrahydrocannabinol (THC). O CBD possui potencial terapêutico e é muito utilizado para o tratamento de doenças crônicas pela ação analgésica que possui. O THC, por sua vez, é o componente psicoativo da planta. Ao contrário do que o senso comum afirma, ele não é o composto maléfico da erva. 

Segundo a enfermeira do Instituto de Medicina Orgânica (IMO) e do projeto Curando Ivo, Jennifer Marques, o tratamento com Cannabis não é com o CBD e THC apenas, é com a planta toda, pois todas as moléculas agem em conjunto. “Apesar de muitos terem medo do THC, ele não é vilão, não causa nenhuma doença neurodegenerativa e nenhum efeito colateral permanente. Pelo contrário, ele ativa neurônios que influenciam o prazer, a memória, o pensamento, a coordenação e a percepção do tempo”, afirma Jennifer. 

O ativista e fundador da Associação Curando Ivo, Filipe Suzin, luta pelo acesso à medicamentos à base de canabinoides para ajudar o avô com Alzheimer. Segundo a biomédica Isabela Carvalho, que acompanhou o tratamento, o Seu Ivo apresentou melhoras em apenas duas semanas. “Ele já conseguia reconhecer alguns de seus parentes e lembrar de pequenas coisas que antes não conseguia”, afirmou. Atualmente, a Associação Curando Ivo recebe milhares de pessoas com os mais variados tipos de condições de saúde. 

Democratização

Em 2014, o Conselho Federal de Medicina (CFM) permitiu a prescrição de canabidiol por médicos em todo o país. No ano seguinte, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) retirou a maconha da lista de substâncias proibidas e permitiu a importação de qualquer produto dela derivado, mediante receita médica. No final de 2019, a Anvisa aprovou o registro e venda de medicamentos feitos à base de derivados da Cannabis Sativa

Cada vez mais, grupos e organizações não governamentais incentivam a pesquisa com a planta e lutam pela democratização do acesso aos seus recursos medicinais e terapêuticos. “Saber como ela interage com usuários adultos, compreender a experiência dessas pessoas e o que alguns estudos com esses pacientes vêm apontando não é só fundamental, como questão de saúde pública. Assim como preconiza o Art 196 da Constituição, a saúde é direito de todos e dever do Estado”, defende Filipe Suzin.

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