Pisos táteis começam do nada e terminam em lugar nenhum

Repórter do jornal O Hoje, Ana Beatriz Santiago percorreu Goiânia e encontrou diversas dificuldades que deficientes visual encontram com facilidade

Postado em: 02-09-2023 às 07h30
Por: Ana Beatriz Santiago
Imagem Ilustrando a Notícia: Pisos táteis começam do nada e terminam em lugar nenhum
Neste caso, a boca de lobo está fechada. Mas há relatos de quem já caiu dentro de uma delas no percurso | Foto: Leandro Braz

Goiânia é uma cidade acessível? Eu posso afirmar que não. Não estou sozinha. E os 1,4 milhão de habitantes da capital podem concordar. Ou não. Antes de tudo, permita que eu me apresente: além de repórter deste jornal, eu sou uma pessoa com baixa visão que precisa utilizar bengala e telelupa. Tenho o transporte público como o principal meio de locomoção, fazendo uso dele diariamente, e vivo há pouco mais de um ano em Goiânia. Sou um dos personagens desse texto e aqui vou relatar minha rotina. 

Locomover-se pela capital não é uma tarefa simples. As calçadas são complicadas, cheias de buracos e desníveis. O piso tátil está presente em poucas calças e a execução não é adequada. As dificuldades são diversas: desde locais com piso arrancado, objetos colocados no passeio, como tapetes, pisos que começam do nada e terminam em lugar nenhum, até raízes de árvores que cresceram demais e cortaram toda a calçada. 

Não é raro que lojas e barracas coloquem produtos em cima do piso tátil | Foto: Leandro Braz

Acabei ganhando o péssimo hábito de simplesmente ignorar a calçada e ir pela rua mesmo, um lugar com uma garantia um pouco maior de uma caminhada tranquila, mas colocando em risco minha integridade física, correndo risco de ser atropelada, por exemplo.

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Além disso, coisas simples como atravessar uma rua podem se tornar tarefas chatas, já que não existem sinais de trânsito com alerta sonoro, ou pegar um ônibus: não é possível ter certeza se estou embarcando na linha certa. Para isso, na maioria das vezes, preciso perguntar para alguém, seja um passageiro ou o motorista, e essas pessoas nem sempre estão em um bom dia.

Queria entender melhor como eu poderia ajudar escrevendo este texto. Por isso procurei Deni Carlos Alves de Freitas, atual presidente da Associação dos Deficientes Visuais do estado de Goiás (ADVEG), para fazer algumas perguntas. Queria saber se ele se lembrava de alguma história envolvendo dificuldade de locomoção em Goiânia que tivesse ficado marcada em sua memória. 

Deni, que também é deficiente visual, respondeu que caiu em um bueiro aberto, sem a tapa mesmo, Setor Norte Ferroviário, enquanto caminhava pouco tempo depois de se mudar para a cidade. Em surpresa, acabei interrompendo-o com um “nossa, eu também!”. As poucas diferenças entre as histórias são o local, obviamente, e o tempo, já que Deni chegou em Goiânia em 1986 e eu caí no início do ano passado. Isso mostra que o espaço mudou, mas talvez não tenha mudado tanto assim.

Certa vez, quando andava pela avenida Anhanguera, acabei cortando o lado direito do rosto e o braço direito com a corrente que segurava um toldo de uma loja. Mas é comum também bater em cadeiras de bares ou nos produtos expostos em calçadas, além de esbarrar em carros estacionados.

 Enquanto o fotógrafo do jornal fazia as fotos que estão nesta matéria, andando por algumas horas, encontramos todos esses problemas citados. Talvez seja necessário utilizar o bom senso e lembrar que alguém precisa utilizar esse recurso, em vez de entendê-lo como uma espécie de enfeite na calçada, evitando colocar coisas em cima ou extremamente próximas.

Deni Carlos lembrou, durante nossa entrevista, que a situação se repete na entrada do Centro de Referência em Oftalmologia (CEROF), que fica próximo ao Hospital das Clínicas, no setor Leste Universitário. A calçada não possui nenhum tipo de adaptação, estava completamente quebrada pelas raízes de árvores e pelo tempo, e existiam diversos comércios ocupando grande parte do passeio.

Ele conta que muita coisa mudou desde que ele mudou-se para Goiânia em 1986, mas ainda está longe do ideal. “A gente vê que hoje existe um conhecimento maior e uma disposição da sociedade em geral. É claro que a convivência ajuda a fixar esse conhecimento, mas falando da parte estrutural da cidade, é mais complexo, porque os problemas urbanos nas grandes cidades cada vez aumentam mais em geral? E isso piora para todo mundo, pode ter certeza que vai ficar pior para pessoas com deficiência.”

A solução é entender a importância do piso tátil

Conversei também com Nilton Lima, vice-presidente do Conselho de Arquitetura e Urbanismo (CAU), sobre as dificuldades técnicas de implementação do piso tátil, como a falta de exemplos em obras públicas e a responsabilização de habitações unifamiliares. “Não é só o piso, mas a calçada também precisa estar adequada. Falta critério e acompanhamento técnico”, explica o especialista.

Além do piso tátil que, ora está incompleto, ora com alguma coisa em cima, existem calçadas intransitáveis | Foto: Leandro Braz

“O município exige que, ao aprovar um projeto, você execute a calçada. Mas há muita deformação nesse aspecto. Você aprovou um projeto e precisa estar com piso tátil adequado segundo a norma, segundo a lei, mas ele é o único da rua, o que pode levar o deficiente para um desnível que não pode ser sinalizado de forma adequada”, complementou.

Quando falamos sobre a capacitação dos profissionais, ele diz que existem cursos sobre o assunto e que pessoas com formação mais recente já têm o tema abordado durante a faculdade. No entanto, ele mesmo participou de uma discussão sobre o assunto pela primeira vez quando ganhou força em 2013, devido às obras para as Olimpíadas de 2014. Existem pessoas com formação mais antiga que talvez ainda não entendem. Para Nilton, não há resistência por parte dos clientes, além da dúvida sobre o aumento do preço, mas ele acredita que a responsabilidade inicial deva ser do estado para uma instalação mais padronizada.

Audier Silva Gomes, diretor do Conselho Estadual de Direitos da Pessoa com Deficiência (CEDD GO), também comentou a dificuldade de se ter um cuidado de instalar o piso na cidade que dificultam a rotina de pessoas cegas, como pisos muito próximos a paredes de pontos de ônibus, a postes e placas de trânsito, que são cortadas por bocas de lobo ou que foram destruídas antes mesmo de serem finalizadas.

“Eu não acredito que um engenheiro desenhou isso, né? É direcionado para aquele ponto. Talvez no momento de fazer a instalação, alguém, de forma desavisada, imagina que aquilo seja um trilho. O que deveria ser feito é estar longe”, explica Audier, que continua: “O resultado? Pega lá uma pessoa cega, uma pessoa com baixa visão. Coloca ela para andar lá, observa as sugestões dessas pessoas que vão utilizar de fato aquela implementação assistiva”. 

O diretor ainda segue sugerindo: “Anote as observações que elas vão fazer e coloque em prática, porque, em geral, serão observações que facilitarão de forma eficaz a quem for utilizar isso em um momento posterior. A convenção internacional de direito das pessoas com deficiência traz o lema ‘nada sobre nós sem nós’, mas na implementação de tecnologias assistivas na urbanização e acessibilidade das cidades, a gente pouco vê isso.”

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