Goiânia: do top less às botinas

Nove escritores convidados contam histórias que os ligam à nonagenária Goiânia

Postado em: 24-10-2023 às 13h00
Por: Redação
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Foto: Leandro Braz/O Hoje

Pedro Novaes

Todo lugar é aquilo que se narra sobre ele. Todo país, região, acidente geográfico ou mesmo uma casa é composto por signos e histórias, nem sempre coerentes, mas amalgamados ao longo do tempo para atribuir-lhe significado.

Uma cidade não é diferente. Goiânia, nesse sentido, começou a ser narrada antes de existir – como encarnação de sonhos, que, nesse caso, falavam sobretudo de uma nova ordem social ancorada em uma transformação política. A nova capital seria o reflexo do futuro que se desenhava após o fim das oligarquias que representavam o passado ainda próximo de um Brasil imperial, escravocrata, atrasado e injusto.

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Por isso, ao casario colonial da cidade de Goiás, contrapõem-se as empenas e ângulos do art decô; à cidade que surgira e crescera organicamente ao redor do Rio Vermelho, o espelho de outra surgida do planejamento técnico; contras as ladeiras e becos, surgem as avenidas largas e retas; República Velha, República Nova. Goiânia faz parte daquilo que talvez seja o único corte radical na história política do Brasil, esse país das acomodações e transições lentas e negociadas.

As imagens ajudam, quem sabe, a compor essa narrativa complexa e contraditória da cidade que completa 90 anos. Entre elas, destaca-se uma da minha infância.

Quando minha família se mudou para Goiânia, em 1982, o grande ponto de agitação da cidade, nos finais de semana, era a Praça Tamandaré. Havia ali vários bares, onde se aglomerava a juventude, e também duas sorveterias. – a Casa Verde, na esquina das ruas 5 e 8, e a Sem Nome, na esquina da Avenida Assis Chateaubriand, onde hoje fica a Papelaria Tributária.

Era ali que, sentados em uma das sorveterias, acompanhámos os rachas de motocicletas, em cujas garupas muitas goianas, conhecidas desde sempre por sua beleza, desfilavam com os seios à mostra. Essa é, para mim, uma imagem-síntese de Goiânia.

Que no Rio de Janeiro, em Ipanema ou na Marquês de Sapucaí, fosse comum o top less, tudo bem, mas em Goiânia? E em plena luz do dia e no mesmo ambiente frequentado pelas famílias? 

Diz muito sobre nós tanto o fato de que isso acontecesse, quanto a constatação de que não ocorre mais. Tornamo-nos um país e uma cidade mais moralistas? Ou as mulheres, pelas bem vindas e necessárias conquistas do feminismo, já não aceitam exibir seus corpos daquela maneira? Quem eram aliás essas meninas? Se alguma mulher que tenha feito top less na Tamandaré topar dar um depoimento, eu me interessaria muito em entender melhor o contexto social da época que permitia que isso fosse visto com naturalidade. 

O que espanta não são os seios à mostra, na verdade, mas sua convivência pacífica com as famílias – dois mundos antagônicos unidos sob um mesmo teto.

Essa imagem põe em questão, desde logo, o caráter conservador de Goiânia. Nem na Londres dos anos 1960 vêem-se imagens semelhantes. Pensando assim, só encontro paralelo em Amsterdã.

É claro que somos uma sociedade conservadora –  os número de Bolsonaro nas eleições o confirmam -, mas o conservadorismo está longe de ser uma chave explicativa para esta cidade, irredutível às narrativas preconceituosas que a enxergam pelo viés do atraso e da cultura rural – como se o rural inclusive fosse a encarnação do que o Brasil tem de ruim.

Talvez a essência dessa cidade – e o que a torna, muitas vezes, indecifrável até para seus próprios habitantes – resida exatamente no fato de que, mesmo pretendendo-se ruptura, ela arrasta consigo toda a história de que desejou se livrar. E, por isso, acaba sendo as duas coisas: é velha e nova, tradicional e moderna, provinciana e cosmopolita.

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