Jovem chegou a ouvir que sintomas de epilepsia poderiam ser castigo de Deus 

O Hoje ouviu a história de Lucas Liandro que sofreu com a perda mãe ainda na infância e com o preconceito por causa da condição da epilepsia

Postado em: 18-11-2023 às 08h00
Por: Ronilma Pinheiro
Imagem Ilustrando a Notícia: Jovem chegou a ouvir que sintomas de epilepsia poderiam ser castigo de Deus 
Lucas Liandro posa sorridente em frente às atividades artísticas de alunos com os quais trabalha | Foto: Leandro Braz/O Hoje

“Antes era tranquilo para estudar, não tinha medo de ir para a escola, conseguia lembrar dos conteúdos, assistir tv por muito tempo sem me preocupar, ir ao cinema e escutar música alta”. O relato é de Lucas Liandro Pereira, professor de Artes Visuais, de 27 anos, ao relembrar da vida antes da epilepsia.

Até o ano de 2008 Lucas levava uma sem qualquer sintomas em Aparecida de Goiânia, como qualquer pré-adolescente de 12 anos. Tirando o fato de, três anos antes, quando tinha 9 anos, ter perdido a mãe. No entanto, numa madrugada fria de 2008, o então menino teve a primeira crise daquilo que ainda não havia sido diagnosticado e era desconhecido pelo pai, irmãos e por ele mesmo. “Eu acordei com as pessoas de casa ao meu redor. Eu estava cansado, com dores no corpo todo como as de uma câimbra”, relembra o que para ele era o início de uma nova realidade. “Estava confuso e fiquei meio aéreo por um tempo até conseguir de fato falar e me movimentar”, acrescenta.

A princípio, os familiares por parte do pai de Lucas, com quem ele e a família passaram a morar, após a morte de sua mãe, acharam que se tratava de uma crise nervosa. Com o passar do tempo, e com as repetições dos colapsos, os familiares passaram a achar que o menino só queria “chamar atenção” ou estava assim por “castigo de Deus” por não frequentar a igreja.

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Aos 14 anos, sem a mãe e com o pai doente de depressão, começou a trabalhar para ajudar no sustento da casa. As rotinas exaustivas do trabalho e escola, mais os problemas de saúde, fizeram com que Lucas abandonasse a escola em 2011 e se dedicasse inteiramente ao trabalho. 

Ele conta que chegou a tentar voltar pra escola algumas vezes, mas sem sucesso. “Tentei estudar à noite e trabalhar de dia, mas não funcionava, pois o cansaço pelo deslocamento e maus hábitos faziam com que eu tivesse muitas crises convulsivas”, conta.

Sempre que podia, consultava um médico pelo Sistema Único de Saúde, o que não o ajudava muito, uma vez que os prazos de uma consulta para outra demorava cerca de 8 meses, segundo o estudante. Lucas só teve um diagnóstico da doença aos 16 anos, quando consultou um médico neurologista por meio da iniciativa privada, pela primeira vez. “Ele disse que eu tinha epilepsia, só não disse qual”, lembra ele, que atualmente faz os tratamentos adequados, que o permite dar aulas e também estudar Artes Visuais na Universidade Federal de Goiás (UFG).

Aline Priscila Pansani, neurocientista, docente da UFG e embaixadora da Associação Brasileira de Epilepsia em Goiás, destaca que o diagnóstico tardio pode piorar o quadro da doença, além de contribuir para um pior prognóstico. Ela relaciona esse atraso ao desconhecimento e preconceito em relação às doenças epilépticas, pois as pessoas geralmente associam a algum problema espiritual, ou pensam que é contagiosa. Segundo a especialista, “é importante esclarecer a população e derrubar estes mitos”.

A Epilepsia é uma doença neurológica grave que afeta aproximadamente 1% da população mundial, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). A presença de crises epilépticas, que são manifestações clínicas caracterizadas pela ocorrência transitória de sinais e/ou sintomas decorrentes de uma descarga excessiva e sincronizada da rede neuronal, de acordo com Aline, podem ocorrer tanto de forma focal – um hemisfério cerebral – como generalizada, ou seja, nos dois hemisférios cerebrais.

Durante a crise, a pessoa pode ter ou não sua consciência comprometida, segundo a neurocientista. “A pessoa com epilepsia também pode ter comorbidades e distúrbios associados como: depressão e ansiedade, a alteração de memória, a Síndrome metabólica, os distúrbios de sono, transtorno de déficit de atenção e o Espectro autista”, destaca.

Existem vários tipos da doença e as causas são diversas, podendo em alguns casos não haver uma causa específica. Dentre as principais causas, estão; traumatismos crânio-encefálicos; acidente vascular encefálico; traumas durante o parto – como ocorrência de baixa oxigenação cerebral-; crises febris na infância e alterações genéticas. “Estas alterações fazem com que o cérebro apresente um foco gerador de crise (foco epiléptico) que pode estar em uma região específica do cérebro ou em várias”, explica a especialista. Em alguns casos a epilepsia pode ocorrer com outras alterações neurológicas e cognitivas, fazendo parte das síndromes epilépticas.

Após o diagnóstico, o especialista indica o tratamento adequado para a doença, que pode ser feito com uso de fármacos anticrise. Outras formas de tratamento são cirurgias e implante de dispositivos, dependendo do tipo de crise e da resposta ao tratamento com medicamentos. “70% das crises podem ser controladas e a pessoa pode ter uma vida normal. Mas, como toda doença, é necessário manter um hábito de vida que contribua para o controle de crises, como dormir bem, ter boa alimentação, não ingerir bebidas alcoólicas e controlar o estresse”, orienta. 

Parceria da UFG e ABE aplica protocolo de primeiros socorros em casos de crise convulsiva

A ação é uma iniciativa da professora do Instituto de Ciências Biológicas da UFG, Aline Priscila Pansani, que também é pesquisadora e tem um projeto de extensão relacionado à epilepsia na universidade. Além disso, Aline é Embaixadora da Associação Brasileira de Epilepsia (ABE) em Goiás. 

Ao jornal O Hoje, a professora explica que  o projeto surgiu a partir de pesquisas desenvolvidas por ela na Associação e também como coordenadora do grupo Amigos anti-mortalidade em Epilepsia (AAME), sobre epilepsia. Além disso, realizou diversas ações voltadas para a conscientização da doenças, bem como a importância dos tratamentos e desmistificação em relação ao problema de saúde.  

A partir dessas ações, foram surgindo novas ideias e trocas entre professores e profissionais. “Observamos como os professores, embora conhecessem sobre epilepsia, não sabiam as necessidades dos alunos, nem como dar os primeiros socorros de forma adequada”, comenta. Quando dois alunos da universidade tiveram crise em sala de aula, evoluíram para Status epilepticus – crises contínuas que não cessam sem medicamentos -, foi percebida a necessidade de que algo precisava ser feito.

A proposta então, foi elaborada e apresentada à Pró-reitoria de Graduação (Prograd-UFG), que acolheu a iniciativa. Como produto deste diálogo, foi elaborada uma Nota Técnica pelos coordenadores do projeto de extensão, a Prograd e a ABE, dando informações sobre a doença e seus impactos no ambiente acadêmico, além de disponibilizar um fluxograma sobre como agir em caso de crise na Universidade, bem como as orientações do protocolo C.A.L.M.A, que consiste em cinco passos fundamentais para apoio em primeiros socorros na crise convulsiva.

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