Quilombolas lutam para ‘sobreviver’ no Estado

Goiás tem cerca de 50 comunidades reconhecidas, entre outras em processo de certificação pela Fundação Palmares

Postado em: 06-10-2018 às 06h00
Por: Sheyla Sousa
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Goiás tem cerca de 50 comunidades reconhecidas, entre outras em processo de certificação pela Fundação Palmares

Maria Helena é representante da comunidade Recanto Dourado, em Abadia de Goiás, certificada pela Fundação Palmares (Fotos: André Bianchi/Secretaria Cidadã)

Rafael Melo

Goiás possui o maior quilombo em extensão territorial do Brasil, localizado em sua maior parte em três cidades da região próxima à Chapada dos Veadeiros (Cavalcante, Monte Alegre e Teresina). Em 2016, haviam 33 comunidades quilombolas certificadas em Goiás, número que saltou para 47 no ano seguinte, devendo fechar 2018 com 51 comunidades reconhecidas como quilombolas em 39 municípios goianos. Devido ao potencial turístico de áreas que perpassam diversas comunidades quilombolas, representantes do poder público têm desenvolvido iniciativas que possam garantir a exploração do turismo de forma sustentável.

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Um dos destaques turísticos é a comunidade do Engenho II, situada na zona rural do município de Cavalcante, ao norte da Chapada dos Veadeiros. No último mês de agosto, a cidade sediou uma audiência de apresentação do resultado de estudos ambientais promovidos pela Universidade Federal de Goiás (UFG) e pelo Ministério Público de Goiás (MP-GO). 

Na ocasião, a pesquisa determinou a necessidade de acompanhamento do ritmo do turista, incorporando novos atrativos aos existentes, como, por exemplo, a criação de um roteiro cultural, que apresente ao visitante um pouco da tradição quilombola. Além disso, foi sugerido que seja estimulado o cultivo de roças, criação de galinha caipira e hortas para gerar renda a outra parcela dos moradores não vinculada ao turismo, assim como não se estimular o “turismo de massa”, tendo em vista a fragilidade do ecossistema da região. 

O prefeito de Cavalcante, Josemar Freire, destacou a importância em promover debates como este, tendo em vista a força turística do município que tem mais de 170 cachoeiras catalogadas, sendo a principal delas a Cachoeira Santa Bárbara, a qual fez o município ser conhecido mundialmente. “É um tema muito relevante para o município, que irá contribuir para a construção de respostas às demandas que surgirem”, destacou.

Essa Avaliação de Impactos Socioeconômicos do Turismo no Engenho II foi coordenada pela professora Maria Geralda de Almeida. Segundo ela, o estudo foi desenvolvido a partir de entrevista com moradores da comunidade. Foram levantados dados que apontam a existência de 150 casas de 750 moradores no Engenho II, além do perfil relacionado à renda familiar, à principal fonte de sobrevivência, às modalidades de trabalho com o turismo e tipos de emprego e serviço que o turismo oferece.

A comunidade do Engenho II é reconhecida como Patrimônio Natural Mundial da Unesco e Patrimônio Histórico e Cultural do Brasil. Com aproximadamente 90% da sua área  ambiental preservada, o local tem potencial para o turismo, tanto Étnico cultural, Eco Turismo, Turismo de Aventura e Turismo Rural. As cachoeiras são pontos atrativos na região, como a Cachoeira Santa Bárbara; dentre outros elementos tais como: vales, fontes de águas termais, rios, chapadões, cannyons, trilhas histórico-culturais e ecológicas, festas populares e religiosas, música, dança e artesanato. O turismo é a principal renda da comunidade de Cavalcante e garante a preservação e conservação do meio ambiente, da cultura local, reconhece e valoriza os produtos e serviços específicos aos turistas. Hoje a comunidade recebe em média de 3 mil visitantes em feriados prolongados.

Certificação

Entretanto, uma das principais dificuldades enfrentadas pelas comunidades quilombolas é a conquista do processo de certificação que garante a legitimidade e incentivo de preservação cultural e ambiental por parte do Estado. Segundo a Fundação Palmares, responsável pelo processo, “a certificação é o primeiro passo para a demarcação e titulação de terras pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), como reconhecimento de que a comunidade existe, baseada em sua história, costumes e, principalmente, sua cultura”. 

Com a emissão de Certidão de Autodefinição de Comunidade Remanescente de Quilombo, a comunidade passa a ter direitos e amparos legais, estabelecidos pelos artigos 215 e 216 da Constituição Federal, que preveem defesa e valorização do patrimônio cultural brasileiro e obrigação do poder público em promovê-lo e protegê-lo.

Segundo a advogada Vercilene Francisco Dias, mestranda em direto pela UFG e remanescente do quilombo Kalunga, a titulação é um documento de domínio, de uso coletivo das comunidades remanescentes de quilombos. Com essa titulação elas podem ter acesso a várias políticas públicas que facilitam o desenvolvimento econômico e também social.  “Hoje são mais de 3 mil comunidades em todo o território nacional e cerca de um quarto dessas comunidades não foram tituladas, um desafio para o estado brasileiro” explica a advogada.

“A dificuldade em conceder essa titulação, que parte de um processo gradativo, gera insegurança nas comunidades que são vítimas de interesses de ocupação e ainda não tem nenhuma documentação para apresentar. Há situações de processos de desapropriação dos territórios com questões de construção de hidrelétrica ou de empresas mineradoras que causam conflitos em várias comunidades” complementa.

Os Kalungas são os maiores representantes das comunidades quilombolas em Goiás. A área ocupada pelos Kalungas foi reconhecida pelo Governo do Estado, desde 1991, como o sítio histórico que abriga o Patrimônio Cultural Kalunga. Hoje, essas comunidades atuam na preservação e conservação da área. A Secretaria Estadual da Mulher, do Desenvolvimento Social, da Igualdade Racial, dos Direitos Humanos e do Trabalho (Secretaria Cidadã), juntamente com o Governo Federal, Estadual e Municipal, tem o papel de promoção e interiorização de políticas públicas, para fomentar a articulação entre essas comunidades, por meio da Superintendência de Promoção da Igualdade Racial (SUPIR). 

Nessa estrutura, há também uma gerência específica com vários servidores que trabalham as políticas públicas voltadas à população quilombola e também outras minorias raciais historicamente discriminadas, como índios, ciganos e outras comunidades tradicionais.

A Secretaria Cidadã também realiza a identificação desses povos, fornecendo informações para o reconhecimento das comunidades e atende demandas específica da população Quilombola existente em Goiás. Dentre as ações realizadas pela Secretaria destacam-se palestras sobre políticas públicas para as comunidades; primeira regularização de território Quilombola, com mais de 40 famílias beneficiadas na microrregião de Ceres; parceria com o SEBRAE-GO para capacitações para mulheres de comunidades tradicionais do Estado; programa itinerante Ação Cidadã em Cavalcante, Monte Alegre e Teresina de Goiás, ofertando serviços à comunidade e roda de conversa, durante as Romarias, com jovens e adolescentes sobre drogas e sexualidade, dentre outros. 

Estudos mostram impacto do turismo em terras quilombolas  

O Ministério Público de Goiás (MP-GO), em parceira com a Universidade Federal de Goiás (UFG), apresentou no último mês de agosto os resultados da avaliação de qualidade ambiental do meio físico no entorno das Cachoeiras da Capivara, Santa Bárbara e Candarú. 

Os estudos, desenvolvidos a pedido da promotora de Justiça Úrsula Catarina Fernandes Silva Pinto, foram executados ao longo dos últimos dois anos por cerca de 20 pesquisadores dos Laboratórios de Geomorfologia, Pedologia e Geografia Física (Labogef) e de Estudos e Pesquisas das Dinâmicas Territoriais (Laboter).

Uma das principais questões levantadas foi apontada pela pesquisadora e professora Karla Faria que sugeriu, conforme o resultado do estudo, a limitação de até 350 visitantes/dia na Cachoeira Santa Bárbara, com a concomitante restrição de até 44 visitantes/hora. Por ser a atração mais visitada da comunidade, o resultado da análise científica era aguardada.

Contudo, segundo esclareceu o presidente da Associação Quilombo Kalunga, Vilmar Souza Costa, já havia um entendimento da comunidade sobre a necessidade desta limitação, que tem sido atualmente definida em 350 visitantes por dia na Cachoeira Santa Bárbara. Conforme detalhou, em reunião anterior realizada com a promotora, os associados já haviam se atentado para a importância do regramento do atrativo e implementado esta medida, que já está em vigor. Ele acrescentou que diversas outras providências ambientais estão sendo implementadas na comunidade.

As demais recomendações desta análise foram quanto à necessidade de manejo nas áreas situadas próximas às vias de circulação, bem como nas cabeceiras dos córregos, que estão bastante expostas a processos erosivos, assim como a manutenção periódica e adequada das estradas vicinais que interligam o povoado às cachoeiras e também que seja avaliado o estado de conservação do sistema de esgotamento da comunidade Engenho II.

Ação Social

De acordo com a Secretaria Cidadã, além de trabalhar na organização social das comunidades, a pasta mantém um trabalho intersetorial de governo com políticas que beneficiam as comunidades quilombolas. Nesse esforço, nos últimos anos, o governo levou diversos benefícios por diferentes pastas a essas comunidades, nas áreas de infraestrutura (construção e recuperação de pontes) pela Agetop, doação de casas à comunidade do Prata (Cavalcante) em função de estragos por enchente, doação de 300 cheques-reforma a comunidades quilombolas de seis municípios pela Agehab e repasse de 12 motocicletas pela Secretaria de Saúde para servir a agentes de saúde nas cidades de Cavalcante, Monte Alegre e Teresina. “Nunca uma secretaria de Estado se fez tão presente na vida das comunidades quilombolas de Goiás como nos últimos anos. Este é o nosso compromisso de trabalhar pela superação das desigualdades também na questão racial, uma  luta que interessa não só às comunidades negras de nosso Estado, mas a toda a sociedade”, destacou o secretário, Murilo Mendonça. 

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