Segunda-feira, 29 de julho de 2024

Índios goianos temem ações do governo

Tentativas de driblar demarcação de terras e recentes invasões por garimpeiros deixam indígenas apreensivos.

Postado em: 09-08-2019 às 06h00
Por: Sheyla Sousa
Imagem Ilustrando a Notícia: Índios goianos temem ações do governo
Tentativas de driblar demarcação de terras e recentes invasões por garimpeiros deixam indígenas apreensivos.

Igor Caldas

Povos Tapuia temem política indigenista do atual governo. A
Terra Indígena (TI) do Carretão, próxima ao município de Rubiataba, a cerca de
300 km da Capital, abriga 54 famílias que possuem laços de ancestralidade com
diferentes etnias que formam o povo Tapuia. O local é cercado por um pólo
agroindustrial canavieiro e áreas riquezas minerais. De acordo com a professora
de educação indígena, Eunice da Rocha, a luta de seu povo é pela reconquista do
território tradicional, mas eles temem perder as terras que já estão
conquistadas.

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“A nossa maior ameaça atualmente é a política. Tudo tem sido
feito para dar brechas para invadirem as terras indígenas. Nossa terra é
cercada pelo setor canavieiro e abriu recentemente um setor de mineração. Esses
segmentos tem ceifado muitas vidas em outros estados. Sei que a exploração
mineral é fora do território, mas os problemas gerados chegam até aqui. Nossa
região sempre foi conhecida pela suas riquezas. A luta do meu povo contra o
invasor resiste desde a época dos nossos antepassados”, reforça Eunice.

A indígena morou na Capital enquanto cursava graduação em
licenciatura intercultural no Núcleo de Formação Superior Indígena Takinahaky
da Universidade Federal de Goiás, único curso voltado para educação dos povos
indígenas da UFG. Agora, ela está cursando mestrado em Performances Culturais e
voltou a morar na terra Tapuia para redigir sua dissertação. A professora está
lecionando na escola que existente dentro da TI. A unidade educacional foi a
primeira escola indígena do estado de Goiás.

Primo de Eunice, Welington Vieira Brandão, também se sente
ameaçado pelo atual governo. “A Política indigenista do nosso presidente é
muito simples: Acabar com os índios do Brasil. O maior perigo atualmente para
nós é o agronegócio. O problema é que quem tem que fazer a fiscalização das
terras indígenas acaba tendo que ser nós mesmos. A FUNAI [Fundação Nacional do
Índio] não tem estrutura para fiscalizar todas as TI’s. Vira uma terra sem
lei”.

Wellington cita como exemplo a morte de um cacique após a
invasão da Terra Waiãpi feita por garimpeiros em julho deste ano no Oeste do
Amapá. Wellington tem o mesmo nível de formação acadêmica de Eunice e também
reside na TI.

Demarcação de Terras

O presidente Jair Bolsonaro fez duas tentativas de transferir
a atribuição da demarcação de Terras Indígenas, que é da FUNAI para o
Ministério da Agricultura por meio da edição de Medidas Provisórias. No
entanto, no início deste mês, o plenário do Supremo Tribunal Federal (STF)
manteve a decisão do ministro Luís Roberto Barroso que suspendeu em junho a
última tentativa do presidente de fazer essa transferência de atribuição.

Além disso, o plenário manteve essa função sob a FUNAI e
devolveu o órgão para a atribuição do Ministério da Justiça. Na ocasião, o
ministro Celso de Melo deu um recado ao presidente. “O regime de governo e as
liberdades da sociedade civil muitas vezes expõem-se a um processo de quase
imperceptível erosão, destruindo-se lenta e progressivamente pela ação ousada e
atrevida, quando não usurpadora, dos poderes estatais, impulsionados muitas
vezes pela busca autoritária de maior domínio e controle hegemônico sobre o
aparelho de Estado e sobre os direitos e garantias básicos do cidadão”.

Estratégia é retirar os direitos dos povos indígenas, diz
professor

Para o Professor Doutor em Antropologia da Universidade
Federal de Goiás, Alexandre Herbetta, a política indigenista atual caminha na
intenção de descaracterizar os povos indígenas em busca da eliminação de suas
diferenças e particularidades para excluí-los do direito a terra e modos de
vida próprios. Direitos garantidos pela constituição de 1988, após muita luta e
organização dos povos indígenas desde a década de 1970.

“O processo de colonização não cessou após a independência
do Brasil. Ele continua através de algumas políticas indigenistas de apagamento
da diferença étnica. Inclusive, é o que se passa hoje nas salas e nas propostas
de políticas que ouvimos do atual governo. Parece que isso vem atuando, como se
a destruição da diferença e a aniquilação da identidade particular desses povos
fosse a base dessa política indigenista”. Ainda de acordo com o professor,
essas medidas são apoiadas com base no preconceito.

A professora Eunice sofreu com esse tipo de preconceito
quando ainda morava na Capital. Ela relata que nunca conseguiu se adaptar ao
modo de vida dos brancos. “Na cidade, quando o povo sabe que somos indígenas,
todos vão olhar para você como se fosse inferior. Se você ainda demonstra que
tem dúvidas em algo, a situação fica ainda pior. Um dos estudantes indígenas lá
estava com dificuldades e pediu ajuda a um colega que o diminuiu. Daí comecei a
ficar travada com algumas dúvidas e foi virando uma bola de neve”.

Ela relata sobre sua dificuldade de viver fora do Carretão.
“Homem branco só pensa em dinheiro. Quando eu estava na cidade, comecei a
chorar e as pessoas diziam que era porque eu não tinha conseguido bolsa. Mas
não era por causa do dinheiro que eu estava para baixo. Quando eu via pessoas
em situação de rua, ou algum colega não conseguia almoçar por falta de
dinheiro, eu me sentia muito mal. Essa situação é impensável dentro da aldeia.
Ninguém deixa o outro passar por dificuldades sozinho”.

Sua ancestralidade que fez com que ela superasse todas as
dificuldades na cidade. “Quando eu voltava para casa chorando, pensava nos meus
antepassados, principalmente nas duas mulheres que formaram nosso povo. Imagina
o que elas passaram na época em que não tinha nenhuma lei que assegurasse
nossos direitos e elas conseguiram segurar nosso território. Conseguiram fazer
com que o nome Tapuia ficasse vivo na história. Isso me dava força”.

O antropólogo Alexandre Herbetta reforça a ideia de que o
preconceito contra o indígena é fruto de uma visão simplista e ignorante do que
o homem branco pensa sobre o que é “ser índio”. “A questão de identidade não é
algo substancial. Não existe uma lista de itens que determinado povo tem que
seguir ou não para ser indígena. Isso na verdade é uma das maiores formas de
discriminação pelas quais essas populações passam”.

Alexandre fala especificamente sobre o preconceito sobre os
índios do Carretão. “Eu vejo que os Tapuia, assim como muitas outras
populações, passam por essa situação porque eles não se encaixam nessa ideia,
no jeito de ser ou de vestimenta classificada no senso comum como indígena. É
uma ideia completamente equivocada do que é ser ou não ser indígena. Ser índio
significa pertencer a um coletivo, acessar uma ancestralidade e ter dinâmicas
coletivas que remetem a uma população específica”.

Eunice afirma que a mistura étnica não exclui a identidade.
“Essa foi uma das barreiras que meu povo mais sofreu para quebrar. O
preconceito pela gente não ter essas características que o branco espera que o
índio tenha. O povo Tapuia só tem essa aparência porque é resultado da mistura
de etnias, dos negros quilombolas e dos próprios brancos. Se a gente não tem a
aparência que eles querem, foi por que o branco nos tirou. Em 1500 o índio
vivia de um jeito, mas o branco também era diferente. Nenhuma cultura é
estática, ela está em transformação todo tempo”.

Para saber mais sobre os povos Tapuia acesse:

https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Tapuio 

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