Famílias são despejadas pela Prefeitura de Goiânia no pico da pandemia

Cerca de 15 famílias passaram a ocupar a via pública em barracos de feitos de lona| Foto: Wesley Costa

Postado em: 10-07-2020 às 06h00
Por: Sheyla Sousa
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Cerca de 15 famílias passaram a ocupar a via pública em barracos de feitos de lona| Foto: Wesley Costa

Igor Caldas

Famílias que foram retiradas de forma truculenta pela Guarda Civil Metropolitana (GCM) de Goiânia de uma área pública municipal localizada no Residencial São Marcos semana passada, resistem pelo direito à moradia. Elas passaram a ocupar a via pública ao lado da área anteriormente ocupada, em barracos de feitos de lona. Houve intimidação por parte de forças policiais após a reintegração de posse e envolvimento da Defensoria Pública e Ordem dos Advogados do Brasil para pedir a suspensão do despejo.

De acordo com ocupantes do local e do Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB) que apoia as famílias, a reintegração de posse aconteceu sem aviso prévio ou notificação de forma truculenta. Francisco Luiz e Silva saiu para trabalhar pela manhã e quando voltou às pressas para tentar salvar sua casa, o imóvel já havia sido derrubado. Ele residia há 17 anos em uma casa de alvenaria na área da prefeitura. “Quando eu voltei, eles já tinham derrubado a casa e passado por cima de todos os meus pertences”, lamenta.

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Francisco trabalha fazendo manutenção em computadores e instalando redes de TV a cabo. Ele revela que além de ter perdido a casa, também teve o material de trabalho e computadores de clientes esmagados pela patrola. “Não deu para salvar nada. Eu ainda estou tentando achar alguma coisa por baixo dos escombros”. Francisco lamenta que ele foi despejado em plena pandemia, quando deveria estar isolado dentro da casa que foi derrubada. Ainda restam cerca de 10 famílias no local.

Andreia Rodrigues de Oliveira vivia há seis meses em um barraco construído de madeira na área da prefeitura. Ela afirma que foi acordada com um arrombamento na sua porta feito por um agente da Guarda Civil Metropolitana. “Os guardas chegaram aqui metendo o pé na porta, acordando a gente e ameaçando derrubar nossas casas com a gente dentro”. Ela ainda diz que presenciou guardas agredindo mulheres e crianças. “Jogaram spray de pimenta e bateram em uma criança”.

A dona de casa está preocupada com o risco de contaminação dela e de sua família. Ela morava com o esposo e três filhos na casa que perdeu.  “Mesmo desempregados, sem poder trabalhar, a gente conseguia ficar em casa para se proteger do vírus. E agora? Estamos amontoados aqui ao relento, correndo risco de vida e sendo ameaçado quase diariamente pela polícia”, lamenta.

A maior parte dos ocupantes do local é composta por mulheres e crianças. Existe também a presença de cadeirantes e idosos que moram no local. Eles foram despejados e tiveram que dormir ao relento na noite de sexta-feira (3). “Foi uma noite muito tensa porque aqui faz muito frio de madrugada e as famílias não tinham como se proteger, pois perderam as casas e os pertences com a reintegração de posse”, afirma Luiz Paulo de Oliveira Neto, integrante do MLB que está acompanhando as famílias no local.

Sem casa e emprego

Muitas famílias perderam seus empregos durante a pandemia, ficaram sem condições de pagar aluguel e tiveram que ocupar o espaço pelo direito à moradia. Paulo Henrique Pires tem 15 dias para retirar suas coisas da sua antiga casa. “Eu trabalhava como fiscal no Eixo Anhanguera, perdi o emprego com a pandemia e não tive mais condições de pagar aluguel”. A sobrinha de Paulo está hospitalizada, com suspeita de Covid-19.

A Defensoria Pública do Estado, o Coletivo de Advogados e Advogadas Populares (CAP) e a Comissão de Direitos Humanos da OAB-GO enviaram dois ofícios à administração municipal. Um dos documentos solicita a suspensão, por tempo indeterminado, do cumprimento de mandados de reintegração de posse, despejos e remoções judiciais coletivas ou individuais devido à pandemia do coronavírus.

De acordo com o coordenador de do Núcleo de Direitos Humanos da Defensoria Pública, Philipe Arapian, o objetivo do ofício assinado por ele é evitar o agravamento da situação de exposição ao vírus que coloca as famílias e a saúde pública em risco. O documento tenta impedir que outras ações como a que ocorreu em São Marcos continue a acontecer em tempos de pandemia.

O outro ofício enviado à administração municipal solicita detalhes ao prefeito de Goiânia, Iris Rezende (MDB), dos documentos sobre o processo administrativo que culminou na ação de despejo das famílias do Residencial São Marcos. Além disso, o documento pede que sejam providenciadas moradias dignas às famílias despejadas.

De acordo com o ofício, caso não haja locais com moradia adequada, o município deve garantir plenamente o direito à moradia, a cada família isoladamente por meio do ‘aluguel social’ a cada uma delas, como rege os termos da Lei Municipal nº 9.778/16. A equipe de reportagem tentou falar com a Secretaria Municipal de Assistência Social, mas não obteve respostas até o fechamento da reportagem. 

Famílias podem ser despejadas à força 

Cerca de 500 famílias que moram em 11 chácaras da Avenida Lincoln, no Jardim Novo Mundo, têm até o dia 14 de novembro para saírem de suas casas. O prazo foi dado pela União.  A defesa das famílias teme pelo cumprimento da medida à força, o que poderia levar a uma nova tragédia semelhante ao que ocorreu em 2007 no Parque Oeste Industrial. Cabe ao prefeito Iris Rezende, definir se a tragédia anunciada irá acontecer mesmo, ou não, uma vez que a União já manifestou interesse em passar o domínio da área para o município, que se manifestou contrário a um acordo em âmbito federal.

O processo para a reintegração de posse tramita na 8º Vara da Seção Judiciária de Goiás. O advogado Fernando Sales, que defende as famílias, entrou com recurso para que a Procuradoria da República se manifeste. “Espero que o juiz possa anular essa decisão para que essas famílias se mantenham no local”. Ainda de acordo com o advogado, na audiência realizada no dia 14 de novembro de 2019 do ano passado, que levou a decisão de reintegração de posse, o juiz tentou fazer um acordo entre as partes. No entanto, o município de Goiânia se manifestou resistente.

O repasse da área é um desejo da Superintendência do Patrimônio da União e o domínio do espaço seria firmado por um termo de cooperação técnica entre a União e a Prefeitura de Goiânia. De acordo com Fernando, a Agência Goiana de Habitação (Agehab), que representava o Governo de Estado na audiência, também se manifestou dizendo que não teria condições de atender ao repasse de domínio da área. Dessa forma, a decisão caminhou para a liminar de reintegração de posse com a eficácia de cumprimento em 12 meses.

Em plena crise pandêmica de Coronavírus, o prazo da Justiça começa a se aproximar e caso a Prefeitura de Goiânia não mobilizou as famílias carentes para um lugar digno de habitação, conforme consta na decisão da ação, a ordem deverá ser cumprida à força. “Essa é a nossa preocupação, que ocorra uma situação que manche novamente a história de Goiânia, como ocorreu no Parque Oeste Industrial”, recorda Sales.

Reurbanização da área

Fernando Sales ressalta que os órgãos de Estado tentam, a todo tempo, desqualificar a área afirmando que ela não é passível de habitação e apontando questões geológicas como justificativa. “A pandemia já aflige essas pessoas economicamente e ainda vem essa notificação, criando temor para os moradores. É preciso um posicionamento do Iris Rezende nesse sentido”.

Segundo a Agehab, o órgão não é dono da área no Jardim Novo Mundo, nem parte do processo de desocupação. A Agência foi procurada pela Superintendência do Patrimônio da União em Goiás (SPU/GO) com pedido de parceria para auxílio na solução da questão. Medidas estão sendo tomadas para celebração de convênio entre a União e a Agehab neste sentido. (Especial para O Hoje) 

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