Escritor holandês usa roubo do coração de Santos Dumont como base de romance

Guilherme Freitas Agência O Globo Depois do suicídio de Alberto Santos Du­mont, em 1932, no Guarujá (SP), o legista encarregado de embalsá-lo

Postado em: 13-04-2016 às 06h00
Por: Sheyla Sousa

Guilherme Freitas

Agência O Globo

Depois do suicídio de Alberto Santos Du­mont, em 1932, no Guarujá (SP), o legista encarregado de embalsá-lo tomou uma daquelas atitudes que fazem a realidade parecer mais fantástica do que a ficção. Por motivos nunca esclarecidos, removeu em segredo o coração do inventor do 14-Bis e o guardou, preservado em formol. Só o devolveu ao governo 12 anos depois – desde então ele está a salvo em um monumento no Museu Aeroespacial, no Rio.

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O roubo do coração de Santos Dumont é o ponto de partida do romance O Homem Com Asas, que o holandês Arthur Japin lançará, pela editora Planeta, na 14ª edição da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), que acontece entre 29 de junho e 3 de julho. Com 20 anos de carreira, nove livros publicados e centenas de milhares de exemplares vendidos na Europa, o autor de 59 anos encontrou naquela cena insólita uma porta de entrada para escrever sobre um personagem que o fascina há anos: o de um homem deslocado, tímido e solitário que, no entanto, alcança a façanha do primeiro voo mecânico da História.

“Sempre me interessei por personagens que não se encaixam direito no mundo e, por isso mesmo, dão um jeito de transformá-lo para realizar seus sonhos. Santos Dumont cresceu acreditando que poderia voar. Quan­do diziam a ele que ninguém era capaz disso, ele pensava: ‘eu serei’”, diz Japin. 

O Homem Com Asas é construído como uma investigação sobre o coração do aviador. Na trama de Japin, o legista se revolta contra a tentativa do governo Getúlio Vargas de acobertar o suicídio de Santos Dumont, que teria se matado pelo desgosto de ver ae­ronaves sendo usadas pelo regime para bom­bardear São Paulo durante a Revolução de 1932. Com a polícia em seu encalço, o mé­dico tem a ajuda de amigos do aviador pa­ra proteger o coração.

Ao mesmo tempo, o romance narra a vida de Santos Dumont, da infância na rica fazen­da de café do pai, em Ribeirão Preto (SP), em fins do século XIX, aos experimentos com dirigíveis e aviões em Paris, no início do século XX. Japin mostra como a imaginação do jovem Alberto foi influenciada pela moderna maquinaria do cafezal e pelas aeronaves mirabolantes dos livros de Jules Verne, autor de clássicos da literatura fantástica como A Volta ao Mundo em 80 Dias e Viagem ao Centro da Terra.

Lançado em setembro na Holanda, O Homem Com Asas já vendeu mais de 30 mil exemplares no país. E pode fazer ainda mais sucesso, a julgar pelas vendas expressivas de romances anteriores de Japin. Inspirado em uma das amantes do poeta italiano Casanova, Os Olhos de Lúcia, único livro seu editado no Brasil até hoje (pela Companhia das Letras), vendeu 380 mil cópias em todo o mundo. Outros de seus romances históricos, como Vaslav, sobre o dançarino Nijins­ki, tiveram números parecidos. Japin diz ter se impressionado com a reação dos leitores holandeses à história de Santos Dumont.

“As pessoas ficavam fascinadas e me diziam: por que nunca tínhamos ouvido falar dele? Infelizmente, pouca gente fora do Brasil conhece essa história. Todo mundo acha que os irmãos Wright são os pais da aviação, mas eu adoro defender Santos Dumont. Ho­je, posso dizer que ele é mais conhecido na Holanda.

Para reconstruir a vida de seu personagem, o autor veio várias vezes ao Brasil, gui­a­do por seu companheiro, o escritor americano Benjamin Moser, biógrafo de Clarice Lispector, que também participará da Flip. Japin buscou ainda detalhes curiosos que iluminassem a personalidade de Santos Dumont. Quando se mudou para Paris, por exem­plo, o aviador pendurou a mesa e as cadeiras no teto da sala, a dois metros do chão. Os convidados precisavam subir esca­das para se sentar, e faziam as refeições co­mo se estivessem em pleno voo.

“Foi o detalhe das cadeiras que fez com que eu me encantasse por Santos Dumont. É como se ele tivesse uma necessidade profunda de se descolar do chão”, diz Japin, que usou a imaginação para preencher as lacunas nas biografias do aviador, criando personagens e diálogos. “A ficção começa onde terminam as pistas dos arquivos”.

Uma das lacunas nas biografias de Santos Dumont é sobre sua sexualidade, motivo de debates entre pesquisadores até hoje. No romance, Japin retrata o aviador como homossexual e sugere um relacionamento entre ele e o mecânico Albert Chapin, que trabalhou com o brasileiro em suas principais invenções. Japin diz que o tema não deveria ser tratado como tabu.

“Para mim, não há dúvidas de que Santos Dumont era gay. Por algum motivo, no Brasil, algumas pessoas não gostam de ouvir is­so. Mas há muito material da época sobre seu jeito feminino e o preconceito que sofria por isso”. 

Além do preconceito, o aviador sofreu com o destino dado à sua criação. No início da Primeira Guerra Mundial, em 1914, chegou a visitar chefes de Estado para defender que o avião fosse usado em missões de paz, não bombardeios. Japin acredita que essa desilusão fez com que o brasileiro desistisse de disputar com os irmãos Wright o crédito pela invenção e, por isso, acabasse menos lembrado que os americanos. Cenário que o holandês espera mudar com seu romance.

“Mais que o avião, o legado inspirador de Santos Dumont é sua bravura. Enquanto mui­tos tentavam voar e fracassavam, ele foi em frente. Vocês já o conhecem bem, mas para mim é um prazer trazê-lo de volta para o resto do mundo. Como escritor, tudo que você espera é que o leitor ame seu personagem tanto quanto você”. 

 

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