O Ocidente não é o bastante

Com fortalecimento de relações culturais, profissionais e familiares, Goiânia abre os braços para o ensino de novos idiomas

Postado em: 19-10-2017 às 06h00
Por: Sheyla Sousa
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Com fortalecimento de relações culturais, profissionais e familiares, Goiânia abre os braços para o ensino de novos idiomas

Guilherme Araujo*

O calendário marcava o ano de 2008 quando a russa Yulia Borges, então na Suíça, conheceu um brasileiro – mais precisamente, um goiano. O namoro, após cinco anos, deu em casamento e, de mudança para o Brasil, trouxe na bagagem uma série de mudanças que a fizeram, determinada a fazer desse intercâmbio uma experiência completa, trocar também de profissão. Yulia resolveu dar aulas de seu idioma natal, o russo.

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O encanto por aprender novas línguas, segundo ela, vem de longa data, e duas teriam sido as razões determinantes frente à iniciativa de ensinar um idioma excepcional em uma cidade como Goiânia. “Sentia muita saudade da língua materna e da minha cultura. Percebi que o processo do ensino e da comunicação com os alunos me permitiria misturar trabalho e prazer. Senti-me instigada”, explica.

Yulia, no entanto, revela que ficou preocupada por uma possível falta de procura, o que deixava uma incógnita: “Criei uma página no Facebook, fiz anúncios no Google, mas, até que os primeiros alunos me chamassem, me senti apreensiva”. Hoje, com um projeto bem-sucedido – que inclui a publicação de um livro e uma plataforma on-line para estudo –, ela critica certas limitações psicológicas criadas em relação ao idioma: “Com frequência, dizem ser diferente, misterioso e extremamente difícil, mas a missão do meu curso é desmantelar esses mitos”.

Compartilhando deste escambo cultural, o estudante de Relações Internacionais Gustavo Russi, de 22 anos, afirma se interessar pelo aprendizado de línguas estrangeiras desde a infância. “Comecei cedo, estudando inglês, aos 8 anos”. Hoje, já fluente em francês, italiano, espanhol e alemão, avalia que sua busca por conhecimento foi tamanha que, em 2015, cruzou o Atlântico Norte rumo a Alemanha, onde viveu por um ano: “Chegando a Düsseldorf, cidade em que morei, vi que não se fala alemão, mas bávaro. Demorei seis meses para me acostumar, mas encontrei meios de aprender”, relembra.

A partir daí, em algo que parecia já ser impossível, iniciou novas leituras de mundo ao expandir seus olhares para línguas, até então donas de baixa procura no Brasil, como o sueco, o japonês e o russo. No coração do Brasil, histórias como a de Gustavo e Yulia se tornam cada vez mais frequentes, transformando Goiânia em um espaço onde contrastes se convertem em fusões culturais, dando espaço ao abraço a novas culturas.

Alternativas

Nos últimos dez anos, de acordo com um levantamento da Unesco, desapareceram mais de 100 línguas; outras 400 vivem uma situação delicada, e, não o bastante, outras 51 são faladas unicamente por uma pessoa. As previsões são entristecedoras em se tratando da garantia da pluralidade e da perpetuação de culturas.

Justamente sob este viés expansivo e mantenedor é que ferramentas como o Memrise e o Duolingo, incentivadores do aprendizado gratuito de novos idiomas, abriram em 2017 cursos de romeno e coreano – uma clara oferta de fuga ao convencional que chama a atenção de seus mais de 200 milhões de usuários ao redor do mundo para a pluralidade de dialetos em torno do globo.

Igualmente fortalecendo esta tendência, é em sua própria casa – um ambiente que reflete a riqueza cultural do Oriente Médio – que a libanesa SouadSabba, ou Khurie, como prefere ser chamada, exerce seu ofício de professora. Há 15 anos na profissão, conta que vive no Brasil há metade desse tempo, lecionando o árabe, considerada uma das línguas mais importantes do Oriente Médio.

A profissão surgiu ainda na Argentina, onde começou a oferecer cursos do idioma para crianças: “Meu objetivo desde que cheguei àquele lugar era ensinar somente para a comunidade árabe, resgatando raízes. Com as dificuldades da língua, pouco a pouco as turmas diminuíram”. Ela revela como as coisas mudaram de figura: “Já no Brasil, abrimos as turmas para a comunidade geral. Os brasileiros são de fato mais interessados. Hoje, em uma das classes que tenho, todos os alunos são daqui”.

A procura por línguas não ocidentais, segundo Khurie assegura, deve-se a fatores variados: “Alguns procuram por amar a música árabe, outros por paixão pela literatura”, conta. Ela ainda observa que a demanda é cada vez maior em se tratando de aspectos profissionais. “Precisamos pensar o mundo como um todo. Alguns alunos já me procuraram visando a oportunidades de emprego nos Emirados Árabes e no Líbano, algo que creio acontecer também com outras línguas ‘não usuais’”, relata.

Ela destaca que, dentre as principais dificuldades para os alunos das turmas de árabe, que divide com outra professora nativa, estão a pronúncia de seis letras, as mais presentes no alfabeto. “Como se usa a garganta para pronunciar, é notória uma dificuldade. Mas tudo é prática; em pouco tempo, se aprende”, diverte-se. 

Panorama

A psicóloga clínica comportamental Íris Gabrielle Ameloti explica que o aprendizado de novas línguas pode trazer diversos benefícios no que diz respeito ao desenvolvimento do cérebro: “É comprovado que estar em contato com outras culturas promove a ampliação de competências verbais e sociais. É notório o aumento de atenção, a capacidade de desenvolver várias tarefas ao mesmo tempo e da flexibilidade cognitiva, bem como a habilidade de se adaptar por manter duas línguas ativadas”.

Poliglota, a chinesa Li Sutianke saiu da cidade de Kunming rumo ao Brasil, há três anos, para lecionar mandarim. Destemida, há pouco mais de um mês vivendo na cidade, caminha pelas ruas da Capital como quem imergiu sem arrependimentos no dia a dia do brasileiro. Sutianke é a mais recente professora do Centro de Línguas da Universidade Federal de Goiás que, desde o mês de setembro, passou a ofertar aulas de mandarim.

“Para os alunos, é como se a escrita fosse uma pintura. Aí está a dificuldade”, conta. “A pronúncia é infinitamente mais fácil, porque temos uma tonalidade de letras muito semelhante à do português. Mas não vejo tantas dificuldades”. A coordenadora do Centro de Línguas da UFG, professora Valdirene Araújo Gomes, diz que os resultados têm sido bastante positivos: “O curso foi divulgado de última hora, e tivemos nas duas turmas cerca de 35 alunos matriculados”.

A iniciativa, que partiu de um desejo de estabelecer uma parceria entre o instituto Confúcio – organização educacional sem fins lucrativos vinculada ao governo chinês –, passa por uma fase experimental. Sem convênio fixo estabelecido, espera que nos próximos meses exista maior claridade quanto ao futuro do curso: “Caso haja demanda, como esperamos, poderemos estender o curso para próximos semestres”.

Para ela, a necessidade de saber a língua, pelo crescimento frenético das relações internacionais, bem como o interesse entre um estreitamento entre as relações de Brasil e China, foram aspectos determinantes para a chegada do curso à Capital. Vindas de partes tão diferentes do mundo, o que Khurie, Li e Yulia talvez tenham em comum seja sua vontade constante de aprender e o recado para aqueles que se aventuram: “Fazê-lo com amor”.

*Guilherme Araujo é integrante do programa de estágio do jornal OHoje.com sob supervisão de Naiara Gonçalves 

  

 

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