O reencontro que virou filme

Relação familiar é tema central do enredo de ‘Quarto Camarim’, lançado nesta segunda-feira (5), em Goiânia

Postado em: 05-03-2018 às 06h00
Por: Sheyla Sousa
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Relação familiar é tema central do enredo de ‘Quarto Camarim’, lançado nesta segunda-feira (5), em Goiânia

GABRIELLA STARNECK*

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O filme o Quarto Camarim, de Camele Queiroz e Fabricio Ramos, será lançado pela primeira vez, nesta segunda-feira (5), no Cine Cultura (na Capital) e em São Luiz (MA). O projeto, contemplado pelo programa Rumos Itaú Cultural 2015-2016, já foi projetado em festivais internacionais, no Canadá (Vancouver), Venezuela (Ilha de Maragarita) e República Dominicana (Santo Domingo). No Brasil, o filme ainda será exibido em 13 capitais. 

Após a exibição de o Quarto Camarim, o público é convidado para um debate com o crítico Fabrício Cordeiro e com o professor doutor Rafael de Almeida, coordenador do curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Estadual de Goiás (UEG). A programação abre a temporada 2018 do projeto de difusão da Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine). 

Filme

O enredo de o Quarto Camarim traz a história do reencontro, depois de 27 anos, da própria diretora, Camele, com o seu tio Roniel, que é travesti, e hoje se chama Luma. Segundo Camele, o distanciamento com seu tio se deu por questões familiares: “Quando a gente é mais jovem, nossa proximidade com a família se estabelece muito a reboque das relações que nossos pais têm com os parentes. Meu pai, por uma série de razões, se afastou da maioria dos irmãos”.

A diretora afirma que a ideia de produzir o filme foi repentina, quando ela recordou momentos da infância em que seu tio, que nessa época ainda era homem, aparecia como flashes de imagens. “Eu me dei conta de que desde aquela época, em que eu tinha 6 anos, eu não o via, sequer sabia nada dele. Como tenho um feito um cinema cujos temas são calcados nas questões da vida, me ocorreu, primeiro, pensar em reencontrá-lo, mas, de alguma forma, claro, pensei em filmar esse possível reencontro para poder partilhar, acontecesse o que acontecesse, porque eu não podia imaginar como seria esse reencontro”, destaca Camele.

Passado algum tempo, a diretora afirma que procurou seu tio e acabou descobrindo que agora ele era Luma e estava vivendo em São Paulo. “Conversamos por telefone, e fomos ampliando nossos contatos, até falarmos de um possível filme. Assim começou Quarto Camarim, afirma Camele. O próprio cinema media a relação entre as duas. Nesse reencontro, Camele questiona se essa busca acontece por razões afetivas ou se limita ao objetivo de fazer um filme. O afeto entre ambas vai se manifestando aos poucos, tensionado pelas conversas sinceras. 

Narrativamente, as próprias tensões da relação entre sobrinha e tia constituem a estrutura da obra, tendo em vista que Luma, às vésperas de iniciar as filmagens, desiste de participar do filme para depois aceitar novamente. Por isso, na fase inicial do longa, essas tensões se revelam na forma de lacunas e buscas paralelas da diretora, diante da ausência da tia. 

O filme adquire, então, outros contornos dramáticos e estéticos, pondo em diálogo as representações da memória da diretora sobre o tio com a personalidade de Luma, e encantando-se com a sua performance íntima e seu caráter. “Para mim, ela se tornou um exemplo de coragem, que acabou por me inspirar por conta de sua forma de encarar as mudanças e os desafios da vida, mesmo os mais difíceis, sempre com altivez e confiança”, afirma Camele. 

Importância 

Segunda a diretora, transformar sua experiência de vida em uma produção audiovisual é importante para dar sentido a coisas que muitas vezes parecem não ter sentido algum. “Ter buscado e reencontrado a minha tia, e além disso, termos feito um filme juntas, apesar de todos os conflitos e tensões que vivemos, nos faz ver mais sentido em viver a vida, nos encoraja a enfrentar os desafios e seguir. Esse é um dos poderes do cinema e da arte como um todo. Sobretudo se formos capazes de transformar uma tal experiência em uma obra que toque a sensibilidade das pessoas, mesmo que não nos conhecem. Esse é o nosso esforço em Quarto Camarim” afirma Camele.

A diretora ainda destaca: “Fazer o filme me transformou. Talvez tenha transformado também a Luma, em algum aspecto; eu creio firmemente que sim”, revela Camele, que acredita essa ter sido uma de suas experiências mais marcantes e intensas, principalmente do ponto de vista da relação entre obra e vida. Quarto Camarim é uma obra que mostra um reencontro entre duas sensibilidades, de diferentes gerações e vivências. 

“O fato de Luma ser travesti traz à tona dimensões sociais e políticas complexas no campo da sexualidade, das diferenças de classe, dos afetos familiares, do preconceito violento e de questões de gênero”, afirma. Contudo a diretora afirma que a abordagem escolhida por ela e por Fabrício se situa no limite das relações entre estética e política, com o intuito de propor ao espectador uma experiência cujo sentido e importância ele mesmo deverá procurar.

“Preferimos não estabelecer de antemão ou julgar a importância que o tema do filme evoca, mas temos consciência de que, por um lado, a força dramática dele reside no fato de Luma ser travesti e ser minha tia, mas, por outro, essa força vem também da expressão pessoal de minhas inquietações e das escolhas formais às quais eu recorro para expressá-las, nublando as fronteiras entre a vida e a arte, entre o documentário e a ficção, entre o fato e a memória.”

Camele Queiroz

A diretora afirma que o cinema esteve presente em sua vida desde a infância – já que assim como qualquer outras criança, ela cresceu vendo filmes. Contudo Camele destaca que, no período em que cursava Comunicação na faculdade, ela foi influenciada por figuras importantes no cenário cultural brasileiro do cinema e das artes, como André Setaro e Rogério Duarte. 

“A formação era Comunicação, e não propriamente Cinema, mas acho que o contato com o pensamento cultural diversificado, abrangente, em vários campos, como o da literatura, o da música, o da dança, o da crítica cultural, enfim, a vivência da cultura em suas várias expressões tem uma importância fundamental que, muitas vezes, o ensino institucional não alcança. Nesse sentido, cabe aos alunos também construírem seus cursos”, ressalta Camele. 

Inclusive, a diretora destaca que esse contato com André trazia para ela um olhar mais estimulante sobre os filmes e sobre o cinema enquanto arte, enquanto expressão de um autor, e completa: “Tenho procurado ver o cinema a partir dessa perspectiva: um cinema brasileiro, ou seja, um cinema que reflete as nossas condições possíveis e as nossas sensibilidades complexas, tristes e alegres, problemáticas e desafiadoras, mas promissoras.”

Questionada pelo Essência se pretendia realizar novos projetos semelhantes ao Quarto Camarim, Camele destaca que um traço comum dos filmes que tem feito é a relação com a vida, com pessoas reais, o que, segunda ela, torna tudo mais arriscado e imprevisível. “Essa temática produz impactos permanentes em nossas vidas e na vida de quem filmamos – impactos muitas vezes íntimos. Nesse sentido sinto que faremos outros filmes como Quarto Camarim, embora com outros temas e outras pessoas, que ainda estamos por descobrir. Afinal, nossos filmes tratam da vida, esse mistério”, finaliza a diretora. 

‘Rumos Itaú Cultural’

Segundo Ana de Fátima Sousa, gerente do núcleo de Comunicação do Itaú Cultural, o Rumos é um dos maiores programas que objetiva fomentar artistas, intelectuais e pesquisadores no campo da arte e da cultura. O programa, que existe desde 1997,  já ultrapassou os 52 mil projetos inscritos vindos de todos os estados do País e do exterior. Destes, foram contempladas mais de 1,3 mil propostas nas cinco regiões brasileiras, que receberam o apoio do instituto para o desenvolvimento dos projetos selecionados nas mais diversas áreas de expressão ou de pesquisa.

Ana de Fátima destaca que o Rumos é importante por não estabelecer um formato específico para o projeto do artista, permitindo que ele use sua criatividade durante a criação. “Deixamos a critério do artista o formato do projeto para que ele possa protagonizar aquilo que deseja. Nós quebramos essa coisa formatada para atender a demanda proposta por eles. Só assim podemos ter um mapa mais fidedigno do que os artistas precisam. A gerente do núcleo de Comunicação do Itaú Cultural ainda ressalta que, desde 2013, o programa está mais abrangente, não definindo editais especifícos e desburocratizando o processo seletivo. 

Camele destaca que o apoio financeiro do Rumos-Itaú Cultural para a realização do filme Quarto Camarim foi crucial, mas se demonstrou ainda mais importante pela flexibilidade e abertura que possibilitou desenvolver um projeto cheio de imprevisibilidades e de contextos instáveis. “O filme revela um pouco isso. Não sei se conseguiríamos fazer o filme sob um regime fechado e burocratizado de patrocínio. O modelo de parceria proposto pelo Rumos possibilitou que o filme acontecesse”, destaca a diretora, que completa: “Sem o apoio do Rumos, provavelmente a realização do filme seria inviável por se tratar de um projeto arriscado em vários níveis, além de exigir uma logística dispendiosa, com gravações em São Paulo, sendo que nós moramos em Salvador”.

Além disso, Ana destaca que o Rumos tem uma grande comissão para analisar os projetos na pré-seleção, para garantir que cada proposta seja lida por no mínimo quatro pessoas. Nesta edição de 2017-2018, os 12.616 projetos inscritos serão examinados, em uma primeira fase seletiva, por uma comissão composta por 40 avaliadores contratados pelo instituto entre as mais diversas áreas de atuação e regiões do País. Em seguida, passarão por um profundo processo de avaliação e análise por uma Comissão de Seleção multidisciplinar, formada por 22 profissionais que se inter-relacionam com a cultura brasileira, incluindo gestores da própria instituição. 

Expectativa

Camele diz que está ansiosa para fazer o lançamento na Capital: “Goiânia tem um público sempre atento ao que está sendo produzido no cinema nacional, e nós temos visto, inclusive, filmes documentais bem interessantes realizados por gente da cidade. Então é sempre instigante fazer essa troca com os goianenses”.

A diretora ainda conta que ela e Fabrício conheceram a cidade de Goiânia em 2015, quando foram apresentar uma produção conjunta dos dois, o filme Muros, no Goiânia Mostra Curtas. “Por sinal, para nós, o evento ocorreu como um espaço de troca bastante estimulante para quem tem buscado desenvolver modos próprios de expressão através do cinema. Temos boas lembranças de Goiânia”, finaliza Camele. 

*Integrante do programa de estágio do jornal O HOJE sob orientação 

da editora Flávia Popov

SERVIÇO

Lançamente do filme ‘Quarto Camarim’

Quando: segunda-feira (5) às 17h

Onde: Cine Cultura (Centro Cultural Marieta Telles Machado (Praça Doutor Pedro Ludovico Teixeira, nº 2, Centro de Goiânia)

Entrada gratuita 

Entrevista: Camele Queiroz 

Reflexão sobre os dramas humanos inpiram Camele 

Ofilme Quarto Camarim, de Camele Queiroz e Fabricio Ramos, aborda o reencontro, depois de 27 anos, da diretora com o seu tio. Segundo Camele, sua inspiração em retratar essa relação familiar surgiu do desejo de refletir sobre os aspectos trágicos da existência humana: “Isso nos empurra para abraçar a vida”. Apresentado em diversos festivais fora do Brasil, o Quarto Camarim será exibido nesta segunda-feira (5) em Goiânia, por isso, o Essência traz um bate-papo que realizou com a diretora Camile Queiroz sobre o enredo do filme. Confira abaixo. 

Como surgiu sua parceria com o Fabricio Ramos?

A parceria com Fabricio surgiu quando nós nos encontramos em 2010: passamos a compartilhar um com o outro todos os aspectos de nossas vidas, inclusive o cinema e a vontade de realizar filmes. De imediato, cometemos uma loucura: a de fazer um filme por nossa própria conta e risco, sem patrocínio, em pleno Réveillon, no terminal marítimo de Bom Despacho, aqui em Salvador, onde milhares de pessoas se aglomeram todos os anos em filas quilométricas para fazer o retorno do feriadão. A ideia era refletir sobre a relação das pessoas com o lazer em meio aquela situação. A partir daí, percebemos que nossas experiências compartilhadas podiam resultar em novos desafios mutuamente estimulados nessa estrada incerta e vibrante ao mesmo tempo, que é fazer cinema autoral no Brasil. 

O enredo foi escrito por vocês dois?

O enredo foi escrito pelas próprias vivências, e depois passou por uma reescrita feita por nós dois, já na fase de montagem do filme. A direção conjunta foi crucial, porque eram nas nossas longas conversas que eu ia refletindo sobre sentimentos e inquietações que, no esforço de estruturar a história e consciente da dimensão do tema (o fato de Luma ser travesti é fundamental), nós íamos tentando discernir os caminhos do filme, os dilemas éticos, os potenciais políticos e as possibilidades estéticas que ele oferecia enquanto filme.

O que te inspirou a retratar essa história?

O que tem me inspirado muito, de uns tempos pra cá, é poder refletir sobre os aspectos trágicos da nossa existência, os dramas humanos. Isso nos empurra para abraçar a vida. A existência humana é cheia de tragédias, amores e dores. Isso se manifesta tanto nas micro relações quanto nas macro. Sinto no ar, hoje em dia, eu percebo uma certa tendência a se tentar sufocar ou evitar essa nossa dimensão trágica. Penso que isso nos infantiliza. A vida de Luma é muito inspiradora nesse sentido. Luma revela essa força das personagens trágicas, de vida difícil, mas de caráter afirmativo, corajoso. Ela demonstra, por exemplo, um forte senso de família e conta que foi, se não a primeira, uma das primeiras travestis a usar saia nas ruas de Feira de Santana, uma cidade do sertão da Bahia, árida em vários sentidos, geográficos e simbólicos, mas mesmo assim, uma cidade que teve momentos culturais marcantes, especialmente no campo da poesia e mesmo do cinema, visto que lá nasceu, viveu e filmou Olney São Paulo, por exemplo. Metaforicamente, vejo Luma reunir a resistência a essa aridez com a chama da vivacidade que marca a cidade em que ela nasceu e cresceu.

Por que a escolha do nome ‘Quarto Camarim’ para o filme?

O título do filme vem exatamente de uma das imagens que estava impregnada na minha lembrança: existia um quarto, na casa de minha avó Aurora (mãe de Luma), em Feira de Santana, que ficava com a porta sempre fechada, exceto por uma brecha por onde eu olhava às escondidas, movida pela curiosidade infantil. Esse quarto se assemelhava muito a um camarim. Eu via um espelho, via muitos objetos sobre a penteadeira, muitos sapatos coloridos e perucas, e lá dentro estava ela, que quando percebia a minha presença sorrateira me botava pra correr.

O filme é mais voltado para esse lado documental ou ele entra mais no gênero ficcional?

O filme tem como lastro o que chamamos de ‘método documental’, que escapa à delimitação de gênero. Trata-se de filmar a vida, explorando através do som e da imagem, o rastro empírico de nossas experiências, no mundo, de forma receptiva a influências, tanto de ficções quanto de obras documentais, mas sempre construídas pelas pessoas que estão no filme e de suas vidas, suas experiências, suas vontades em contato com as minhas, enquanto diretora.

Qual a sensação de já ter projetado seu filme em festivais internacionais?

O que nos anima é perceber que a história que contamos e a forma que escolhemos para contá-la conseguem falar a pessoas de outros lugares, de outros países. Gostamos de dizer que o filme falou a um público, não importando o tamanho, das três Américas: a do norte, a central e a do sul, ou seja, considerando o Canadá, a República Dominicana e a Venezuela, países onde o filme exibido em festivais. Agora é vez do Brasil, e, nesse sentido, a Abraccine cumpre uma função crucial: apresentar filme que, nem sempre, por várias questões, teriam visibilidade no cenário nacional.

 

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