Resquícios do passado que perpetuam até os dias de hoje

‘Depois do Corpo’, de forma indireta, leva o espectador de volta ao período ditatorial no Brasil

Postado em: 01-06-2018 às 06h00
Por: Sheyla Sousa
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‘Depois do Corpo’, de forma indireta, leva o espectador de volta ao período ditatorial no Brasil

GABRIELLA STARNECK*

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O espetáculo Depois do Corpo, peça do dramaturgo Almir Amorim, terá 20 apresentações gratuitas em Goiânia, a partir de segunda-feira (4), começando no Espaço Cultural Novo Ato.  Escrita por Almir na década de 1960, a peça continua sendo atual, e faz críticas ao capitalismo exacerbado, ao homem burocrata e ao sistema que engole a fragilidade. “Depois do Corpo trata da violência, da exclusão e da barbárie no encontro de três personagens, um casal integrado na sociedade, e um homem excluído do meio social”, afirma o dramaturgo ao Essência.

O espetáculo, exemplo do chamado teatro do absurdo, fala também de intolerância, violência e requinte de crueldade humana. A barbárie é aborda na convivência diária da urbanidade. Traz algo de ironia e sarcasmo em relação ao modelo atual de família e à sociedade líquida e consumista. A montagem está calcada nas vertentes do humanismo e suas variantes observadas no assistencialismo, nas convenções do consumo e na utopia da felicidade. O projeto foi aprovado pelo Fundo de Arte e Cultura de Goiás.

Espetáculo

Depois do Corpo foi escrito na década de 1960, período da ditadura militar, por Almir Pessoa. O dramaturgo conta que a ideia de escrever a obra surgiu durante sua vivência no período ditatorial. “Eu observava as pessoas, como éramos tratados. Tudo aquilo que aconteceu quando o País estava sendo governado pelos militares me motivou, mas a peça não foca especificamente nesse período, tanto que ela acontece num centro urbano”, afirma Almir. 

Embora a peça tenha sido escrita durante a ditadura militar, ela não estreou nesse período, como conta o dramaturgo: “Na época em que o espetáculo foi estrear, na década de 70, foi proibido de ser exibido pela censura. Inclusive eu fui acusado de apologia a violência, drogas e subversão a política. Depois do Corpo só foi apresentado em 2014, em Goiânia, em uma homenagem que fizeram aos meus 50 anos de história no teatro. A montagem dela aqui na Capital foi muito bem recebida”. 

Luzia Mello, diretora do espetáculo e esposa de Almir Pessoa, conta que ela teve a ideia de transformar o texto do esposo em uma peça para comemorar os 50 anos de estrada do dramaturgo. “Quando ele ia completar 50 anos de carreira no teatro, eu pensei: ‘Gente, preciso fazer algo para essa data, vamos encenar o texto do Almir’. Aí eu comecei a adentrar mais no universo dele de dramaturgo. E foi e está sendo muito bom isso, porque, quando você mergulha nas obras dele, você percebe ainda mais como foi dolorido a ditadura, então a gente aprende muito com isso”.

Segundo Almir, houve algumas alterações em relação à montagem que foi apresentada, em 2014, para a que será exibida, neste ano, na Capital: “Principalmente no elenco. Essa nova montagem conta com a participação de Bruno Peixoto, um dos melhores atores de Goiânia, além de Jhey Matos e Tiago Rener – o único que esteve presente na apresentação de 2014. Mudamos também alguns detalhes para melhorar o espetáculo”.

Reflexão

Segundo Almir Pessoa, em princípio a proposta de Depois do Corpo é entreter, mas o autor também afirma que no fundo o espetáculo também desperta uma reflexão sobre o período ditatorial, já que algumas circunstâncias dessa época perpetuam até hoje. “Depois do Corpo transcende o período militar. A gente percebe como aquele tempo influenciou/ influencia as pessoas que foram criadas naquele tempo e como elas se comportam hoje”, afirma o dramaturgo. 

Luiza compartilha da mesma visão do esposo: “Apreciar a peça é um tapa na cara, porque ela ainda é atual. Nós começamos a pensar: ‘O que a gente está fazendo que parece que a sociedade está estagnada?’. Além disso, esse momento que o nosso País está enfrentando, a greve dos caminhoneiros, coincide muito com a ideia do espetáculo,  porque vemos pessoas  pedindo a volta da ditadura. Seria muito bom se a peça retratasse só o passado, mas a gente vê que ela ainda está no presente”.

A diretora afirma que a principal dificuldade relacionada ao espetáculo está ligada a encenação. “Sentir o que está nas entrelinhas, e perceber que isso foi vivido por outras pessoas é uma das principais dificuldades, porque isso magoa. Luiza ainda diz que acredita que o público se envolva com esse sentimento que é transmitido durante a sessão. Inclusive,  após a exibição do espetáculo, a direção do Depois do Corpo faz um debate com a plateia sobre os assuntos embutido no enredo. “Essa coisa de bater papo é muito bom, porque trazemos a plateia para dentro da peça”, afirma a diretora. 

Depoimentos

“Participar da montagem de Depois do Corpo é uma honra devido a dois aspectos fundamentais. Primeiramente, Almir escreveu essa obra na década de 1960. Ele faz uma dura crítica ao capitalismo exacerbado, ao homem burocrata e ao sistema que engole a fragilidade, ou à falta de espaço do ser humano falido. Segundo, porque cria um movimento da condução e carpintaria dramatúrgica genial e ousada para essa década. Um modelo de teatro do absurdo, com suas nuances e nonsenses, que seu texto teatral nos aponta, com pitadas fortes de ironia e sarcasmo ao modelo atual da família, da heteronormatividade, da modernidade e da sociedade líquida e de consumo. Uma aventura ousada, divertida e profundamente contundente, nesses dias que se seguem”, afirma Bruno Peixoto, ator do espetáculo.

“Depois do Corpo é um espetáculo cheio de significados pra mim. Tem uma energia baluarte que vem desde a escrita do dramaturgo Almir Amorim e tudo o que ele carrega de vida, principalmente na época da repressão. E, hoje, estudando Artes Cênicas no Rio de Janeiro, sempre me deparo com algumas coisas que os professores falam – ou em algumas conversas no final de espetáculos – sobre a época da ditadura em que todos os textos eram revisados e censurados. Saber que o Depois do Corpo de certa forma passou por esse processo, dá um vigor e uma vontade cabal de colocar essa energia nos palcos hoje”, afirma Tiago Rener, também ator de Depois do Corpo. 

Sinopse

O espetáculo fala de três movimentos de encontros e desencontros humanamente impossíveis, onde estão situados três corpos ocupando um mesmo espaço, apenas para aproximar os mundos e buscar uma alternativa de coexistência entre os diferentes caracteres dos semelhantes. Em um realismo transparente, Depois do Corpo é depois ou para além do corpo. Entre o trivial e o ritual.

A ação se dá na paisagem urbana de uma praça mais ou menos central, quase baldia, onde há ligeiras mudanças exigidas pelos personagens no seu embate dramático. Um casal de namorados se defronta com um marginal desconhecido que se diz vítima da sociedade e quer se parecer um orago do convívio social. É como um desses acontecimentos cotidianos de tensão e absurdo da vida atual. As personagens Telles e Betinha procuram de toda maneira manter a compostura evitando uma atitude desmedida, contrária a seus princípios humanos.

Mas é preciso dominar o indivíduo D (o outro personagem da peça) que, quando não os obriga a tomar uma decisão de violência, quer mantê-los como reféns. O resgate é o assassinato do marginal pelo casal. Numa mística caseira, é celebrado o ato de consumo e neutralização do marginal alucinado. Em três movimentos dramatizados, a peça sem estruturação convencional de atos e cenas se apresenta como um drama moderno no qual são destacados momentos e situações das personagens de acordo com a visão do diretor e seus atores.

Telles é um homem bem situado, ambicioso, de certa forma tolo, mas correto no seu dia a dia. Betinha é uma jovem universitária, sensível e de certa esperteza feminina. D é um homem de rua, dissidente de algum pensamento político, sem nenhuma preocupação com o correto, mas frágil no seu todo.

Nos seus encontros habituais, Telles e Betinha marcam de se verem numa das praças de certa cidade. Telles chega antes e dá de cara com um estranho indivíduo que passa a subjugá-lo, castigá-lo, se divertir com sua maneira de crer e viver no sistema onde se encontram, levando-o quase a matá-lo, se fosse possível. 

Betinha chega. Telles busca sua pasta de trabalho que está com ela, que chega segundos depois da saída dele. D então tem agora uma segunda caça para brincar e devorar no seu mundo. Betinha tenta convencer D de que ela é sua amiga e que ele pode ser amado pelas pessoas. D quer convencer Betinha a vir para seu mundo, mas chega a usar de violência para mantê-la sob seu domínio e fazê-la sua parceira. Betinha finge se entregar. Chega Telles, que estranha o comportamento de Betinha, mas não se dá por vencido e oferece o casamento com todo o conforto a Betinha. Os dois neutralizam D e o descartam de vez para viverem sua vidinha prometida.

*Integrante do programa de estágio do jornal O HOJE sob orientação 

da editora Flávia Popov

SERVIÇO 

‘Depois do Corpo’ 

Espaço Cultural Novo Ato

Quando: 4 e 5 de junho

Onde: Espaço Cultural Novo Ato (Rua Doutor Sebastião Fleury Curado, nº 193, Setor Crimeia Leste)

Horário: 9h e 20h

Entrada gratuita

Quando: 6 e 7 de junho

Onde: Casa de Cultura Fabricarte – Colégio Estadual Roberto Civita (Av. Orlando Marquês de Abreu, Quadra 18, Lote 10, Residencial Katia)

Horário: 20h

Entrada gratuita

Centro Cultural Martim Cererê

Quando: 9, 10, 11 e 12 de junho

Onde: Centro Cultural Martim Cererê (Travessa Bezerra de Menezes, s/nº, Setor Sul)

Horário: a ser definido

Entrada gratuita

Espaço Sonhus

Quando: 14 e 15 de junho

Horário: 12h30 e 20h

Onde: Espaço Sonhus (Rua 18, nº 123, Centro)

Entrada gratuita 

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