Segunda-feira, 22 de julho de 2024

Concurso de moda levanta debate sobre decolonização

Fernando Alvim, Mestre em Literatura Brasileira pela USP, destacou a importância de questionar a predominância de referências do norte global em concursos que enfatizam a identidade regional

Postado em: 03-05-2024 às 08h08
Por: Luana Avelar
Imagem Ilustrando a Notícia: Concurso de moda levanta debate sobre decolonização
Apesar das críticas levantadas, a organização enfatizou que o objetivo final do evento era ampliar a visibilidade e valorizar os talentos criativos de Goiás, promovendo um diálogo inclusivo sobre questões de identidade e moda. | Foto: Pedro Pinheiro

O concurso ‘Qual é a Sua Identidade?’, promovido em abril pelo Moda Identidade Goiás (MIG), que teve como objetivo celebrar a diversidade e a expressão pessoal através da moda, contou com a participação de designers, estudantes e outros apaixonados pelo setor. No entanto, a escolha da primeira colocada, Jessica Magalhães, que apresentou um vestido inspirado na Art Deco, uma estética fortemente influenciada por estilos europeus, gerou debates sobre a necessidade de uma reflexão crítica decolonial na compreensão das dinâmicas culturais e sociais em contextos globais, especialmente em territórios que foram colônias europeias.

De acordo com Fernando Alvim, mestre em Literatura Brasileira pela USP, a escolha da vencedora contrasta com a proposta do concurso de explorar elementos do cerrado brasileiro e valorizar as raízes locais. “Questionar a coerência da temática escolhida pela primeira colocada é importante, uma vez que a organização do evento fala em decolonização e identidade. A escolha da vencedora com referências do norte global acaba por perpetuar uma perspectiva colonizada, apagando as contribuições das matrizes indígenas e africanas”, destaca.

Alvim argumenta que, ao privilegiar referências do hemisfério norte, as instituições perpetam a ênfase no aspecto colonizador, branco e europeu, em detrimento da diversidade e multiplicidade que compõem a identidade cultural brasileira. “É incontestável a importância das contribuições das matrizes indígenas e africanas para a nossa construção identitária, no entanto, elas são propositadamente omitidas e apagadas, enfraquecendo e desfigurando nossa riquíssima identidade multiétnica”.

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Na última semana, Suzany Newbartth, criadora da marca Oyewá, usou suas redes sociais para fazer um manifesto questionando a essência dos concursos de moda. Em seu texto, ela se apresenta: “Sou uma mulher preta com descendência indígena, originária da periferia de Aparecida de Goiânia”. A criadora elogiou a diversidade dos participantes, destacando a riqueza cultural de Goiás que cada um buscava expressar. No entanto, sua crítica se direcionou ao resultado final.

Ao comentar a premiação, Suzany levantou questões sobre a apropriação do termo ‘decolonização’ e a representação limitada da identidade regional no concurso. Ela observou que, mesmo com a intenção de celebrar a cultura local, o evento acabou por perpetuar uma estética eurocêntrica, contrariando seu objetivo inicial e indo contra a todo um movimento mundial e reflexão crítica e reparação histórica.

Um seguidor comentou: “Pontual para a moda, porém que reflete a cultura do lugar onde vivemos, que se desdobra nesta mesma linha reflexiva e combativa, diante da invisibilização e ou uso de nossas referências, com interesses apropriações e ao final mantém-se a arte classista local”.

Outro seguidor destacou: “O Cerrado é muito mais do que apenas um bioma; é um tesouro de riqueza cultural, ambiental e histórica. Seus povos têm desenvolvido ao longo dos séculos um modo de vida profundamente conectado à terra, permeado por conhecimentos tradicionais e práticas sustentáveis. Isso é puro ouro para inspirar o olhar e o fazer, seja de qualquer natureza! É importante demais questionarmos as estruturas que perpetuam uma ideia hegemônica e eurocêntrica da identidade regional – regionalidade essa que é tapeçaria única e construída pelo poder popular. Temos tantas referências significativas para representar elementos nossos, do nosso bioma, e ainda assim superestimam elementos que foram impostos e não refletem nossa verdadeira identidade cultural. A pergunta que fica é: quanto vale a insistência da contradição, @modaidentidadegoias?”.

Bárbara Félix, mente por trás do concurso, compartilhou sua visão: “Queríamos criar uma plataforma inclusiva onde artistas locais pudessem expressar livremente suas identidades, inspiradas em elementos regionais, mas também refletindo suas próprias experiências pessoais. Não limitamos a expressão e a criatividade, desde que estivessem enraizadas em Goiás”.

Em relação aos questionamentos sobre a coerência das escolhas temáticas dos participantes, especialmente em um contexto onde se destaca a importância da decolonização e da valorização do conhecimento local, Felix destaca a abordagem inicial do evento.

“As escolhas iniciais não foram através de júri, e sim de votação popular. Entre cerca de 50 inscritos, foram selecionados através do voto popular via internet, no site do evento, 15 looks a serem premiados com R$ 3.500,00 (três mil e quinhentos reais) em dinheiro para executarem o look da passarela posteriormente e apresentá-los diante dos jurados”, afirma Felix.

Ela ressalta que a premiação foi pensada para garantir igualdade e inclusão, independentemente de raça, instrução, etnia e afins, resultando em uma excelente diversidade inicial. “O foco principal do evento são as ações formativas, mesas de debates, criação de pontes e network entre agentes criativos. Focamos em artesanatos, fazer manual e povos originários como partida inicial desta jornada de autodescoberta que propõe o evento”, comenta. Ela reconhece que o tema do desfile não correspondeu totalmente à proposta geral do evento, mas destaca que o desfile faz parte do compromisso assumido pela organização.

“O objetivo final do evento é ampliar a visibilidade e valorizar os talentos criativos de Goiás, além de promover um diálogo inclusivo sobre identidade cultural e moda”, explicou Bárbara. “Queremos criar pontes entre diferentes segmentos criativos e impulsionar a economia criativa local”.

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