Da crise à criação

Nelson Coelho retrata sua experiência com a COVID-19 em ‘Pandelirium’, livro-disco que combina texto, pintura e música

Postado em: 18-05-2024 às 10h00
Por: Luana Avelar
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As pinturas criadas por Coelho buscam registrar visualmente as lembranças de sua internação, incluindo os delírios durante a intubação e as cenas do ambiente hospitalar | Foto: Divulgação

Em meio a um mundo tomado pela incerteza e pelo caos da pandemia da Covid-19, o arquiteto, artista multimídia e músico Nelson Coelho encontrou na expressão artística uma forma de processar sua própria experiência como paciente grave da doença. O resultado é ‘Pandelirium – Um Relato Multimídia da Covid-19’, um livro-disco que combina texto, pintura e música para compartilhar sua jornada pessoal.

Aos 60 anos, em março de 2020, no início da crise sanitária global, Coelho contraiu o novo coronavírus e precisou ser internado. O que se seguiu foram momentos de intenso drama e incerteza, com períodos de intubação, inconsciência e uma longa recuperação. “As imagens de um comboio de caminhões do exército italiano conduzindo os corpos para o sepultamento coletivo eram assustadoras, e as estatísticas cada vez piores. O isolamento parecia aumentar o medo e a busca por informações confiáveis, o que não é tarefa fácil nesse mundo de Fake News de hoje”, relembra o autor.

A motivação inicial em compartilhar sua história veio da curiosidade de familiares e amigos sobre o que ele havia vivenciado. “No começo de 2020, quando eu peguei a doença, as notícias que vinham, inicialmente da China e depois da Itália e da Espanha, eram aterradoras e as únicas ferramentas de enfrentamento eram as máscaras e o isolamento”, explica. “Essa curiosidade, especialmente no início da pandemia, se deveu ao desconhecimento da doença e ao isolamento necessário para evitar o seu alastramento”.

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Foi a partir de uma longa postagem no Facebook, em 2021, narrando sua experiência, que ‘Pandelirium’ começou a tomar forma. “Essa longa postagem se transformou no embrião da obra, no entanto, desde meados de 2020 eu já vinha compondo as músicas e já tinha a estrutura do disco praticamente pronta, o número e a ordem das músicas e sobre o que versariam”, revela Coelho.

Para estabelecer uma conexão entre as diferentes manifestações artísticas, Nelson adotou o conceito de efemérides como estrutura do livro, marcando momentos importantes de sua jornada, como o aniversário de um ano da extubação. 

A música, que sempre teve um papel relevante na vida do autor, tornou-se ainda mais importante durante sua recuperação. “Logo que tive alta, apesar da dificuldade física causada pela anemia, cansaço e perda muscular, tocar já era possível. Alguns amigos músicos me convidaram para colaborar em algumas músicas pela internet, gravando em casa e mandando arquivos. Isso foi muito benéfico para mim, tenho certeza que ajudou na recuperação, especialmente na retomada do controle motor fino das mãos”, relata.

Para ele, a música não apenas tem um papel “altamente espiritual e, possivelmente, curativo”, mas também complementa a narrativa. “Lembrando que a maioria das músicas foi composta antes do livro começar a ser escrito”, ressalta.

A colaboração com a banda Dialeto para a criação da trilha sonora que acompanha o exemplar foi um processo gradual de cerca de dois anos. “A banda Dialeto foi formada em 1987, mas já conta com a formação atual há dez anos. O processo de composição começou em meados de 2020, logo depois da minha alta e antes de qualquer ideia de livro, quando fiz a concepção completa do álbum e comecei a compor as primeiras músicas”, detalha o autor.

As pinturas criadas por Coelho para ilustrar a publicação seguiram dois caminhos: “um de criações compostas a partir da lembrança dos delírios da intubação, e o outro foi a recriação de cenas a partir de fotos tiradas no hospital, com a intenção de registrar visualmente o que acontecia na UTI e no quarto do hospital, principalmente o lado humano e compassivo dos profissionais que cuidaram de mim”.

Revisitar essas memórias durante a escrita da obra não foi um processo fácil emocionalmente. “Acho que o desafio é aceitar as emoções como algo natural e que, de certa forma, reafirma a nossa própria humanidade, e que as lágrimas têm o seu valor e nem sempre precisam ser evitadas”, afirma. 

Um dos momentos marcantes que o autor escolheu destacar na obra foi a experiência de ouvir a voz encorajadora de um técnico de enfermagem durante sua inconsciência. “Acho que o momento mais significativo, que descrevo, foi quando estava entubado e inconsciente, mas mesmo assim ouvia uma voz que me estimulava positivamente dizendo: ‘Aê..Seu Nelson! O senhor tá melhorando! O sr. vai sair dessa! Falta pouco! Aguenta firme!’, isso tudo dentro de um delírio onírico obscuro com tons avermelhados, onde me imaginava em um grande salão sob uma cúpula geodésica e com uma máquina enorme e estranha que causava sofrimento. Descobri depois que se tratava de um técnico de enfermagem que realmente falava comigo, mesmo eu estando inconsciente, e que isso era percebido e trazia conforto e esperança em meio à enorme solidão da inconsciência”.

Ao ser questionado sobre suas esperanças em relação à contribuição da obra para a compreensão coletiva da pandemia e da condição humana, Nelson enfatiza a importância de registrar essa experiência traumática, mesmo que muitos queiram esquecê-la.

“Pandelirium é uma obra que surgiu como uma necessidade de registro de um evento que afetou profundamente a todos mundialmente, mas também como uma forma de agradecimento a todos que estiveram na linha de frente do tratamento, arriscando suas próprias vidas para cuidar dos doentes e também aos que, mesmo de longe, tiveram compaixão e se mobilizaram com rezas, energias, pensamentos e qualquer atitude positiva que pudesse, mesmo de forma mágica e desconhecida, ajudar na cura e eliminação desse vírus tão maligno”, afirma.

O autor reconhece que, no momento, a maioria das pessoas prefere esquecer o sofrimento da pandemia e voltar à normalidade. No entanto, ele acredita que é importante contar como foi a experiência dentro dos hospitais, as dificuldades da recuperação e o comportamento das pessoas nesse período, pois novas pandemias podem surgir a qualquer momento. “Talvez em 10, 20 ou 30 anos uma nova geração se interesse em saber com mais profundidade o que passamos”, ressalta Coelho.

É com essa motivação de registrar e preservar a memória dessa experiência pandêmica que ‘Pandelirium’ foi concebido por Nelson Coelho. Mais do que um relato pessoal, a obra busca ser uma homenagem a todos aqueles que se dedicaram ao cuidado dos pacientes e uma advertência sobre a necessidade de estar preparado para enfrentar novos desafios sanitários que possam surgir no futuro. “É para não esquecer mesmo”, conclui o autor.

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