‘Trote’ – A casa poética de Jheferson Rosa

Autor convida o leitor a adentrar em um universo poético marcado pelo trânsito, pela ambiguidade e pela violência silenciosa dos espaços de afeto

Postado em: 12-06-2024 às 08h30
Por: Luana Avelar
Imagem Ilustrando a Notícia: ‘Trote’ – A casa poética de Jheferson Rosa
A casa, como lugar físico e ideia abstrata, é central nesta obra, representando tanto conforto quanto engano | Foto: Arquivo Pessoal

Palavras de Clarice Lispector aparecem na epígrafe de ‘Trote’, o novo livro de poesia de Jheferson Rosa: “Existe um ser que mora dentro de mim como se fosse a casa dele, e é”. Essa frase abre as portas para adentrarmos na casa construída com os versos deste autor de apenas 26 anos, que se apresenta como uma voz poética ascendente no cenário literário brasileiro.

A obra é a segunda incursão de Rosa na poesia, após a publicação de seu debut ‘Avião de Papel’ em 2021. Dessa vez, o jovem escritor goiano nos convida a explorar um universo poético marcado pelo trânsito, pela ambiguidade e pela violência silenciosa que reside nos espaços de afeto. Não se trata de uma casa definida e segura, mas sim de um lugar em constante movimento, cujas paredes escondem segredos e enganos.

O autor conta que “Trote não foi um livro planejado, foi uma espécie de pesquisa que fui fazendo sem saber muito bem onde ia chegar, o título surgiu dessa forma também, no trajeto”. Ele explica que “essa palavra tanto poderia significar o engano do ‘fazer um trote’, quanto o movimento do ‘trotar’ dos cavalos”.

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Além disso, ele realizou um processo de ‘performance’ após a conclusão do livro, guiado pela frase de Gabriel Joaquim dos Santos (idealizador da Casa da Flor): “esta casa não é uma casa, isto é uma história”. O autor fez um trajeto no mapa de Goiânia, passando por todas as casas em que morou, fotografando-as uma a uma. “Essas fotografias também estão presentes no livro que vai ser publicado”, revela. 

Da autobiografia à ficção

A primeira parte da obra, intitulada ‘.trinta-e-oito’, é um ponto de partida revelador. Nela, o autor parece se debruçar sobre episódios autobiográficos, explorando as relações entre violência e afeto em espaços íntimos. Ele nos apresenta situações concretas, como a visita de seu primo que o acorda em uma manhã chuvosa e aponta uma arma em seus olhos, dizendo que é apenas uma ‘brincadeira’.

Essas cenas reais, carregadas de tensão e ambiguidade, servem como ponto de partida para uma investigação mais ampla sobre os limites entre a memória e a ficção. “Onde na memória se guarda aquilo que fomos?”, questiona Rosa, sugerindo que a própria realidade pode ser redefinida pela maneira como a narramos.

Ao longo do livro, ele vai vinculando esses objetos de afeto e violência, em um esforço de compreender onde podemos nos abrigar quando a própria casa se torna um lugar de perigo. “A resposta para essa questão talvez esteja na ficção, e na maneira que ela nos permite a recriar esses ambientes da memória, ou seja, da realidade”, conta.

Um fluxo de consciência poética

O autor descreve seu processo criativo como um ‘fluxo de consciência’ que conecta fatos autobiográficos, referências e ficção. Ele explica: “Deixei que a memória fosse fazendo o trabalho de associação livremente de uma coisa a outra, para depois sentar e revisar o que fazia sentido ou não para ser exteriorizado”.

Essa abordagem resulta em uma leitura que fluí como um rio, com versos que se encadeiam de maneira orgânica, embora não linear. O leitor é convidado a acompanhar esse movimento, sentindo como se estivesse dentro da própria mente do poeta, testemunhando o processo de criação.

Ademais, Rosa recorreu a uma estrutura de capítulos que dividem estudos específicos, criando uma espécie de argumento que vai sendo construído ao longo do livro. “Mas a sequência disso foi sendo feita naturalmente, assim que percebia que a associação pedia um novo ‘bloco’ eu saltava a página para separar, porém um ‘capítulo’ vai puxando o outro, linearmente”, explica.

Arma-palavra e moradia poética

Um dos aspectos mais intrigantes da obra é a maneira como é trabalhada a metáfora da ‘arma-palavra’ e a ideia de ‘moradia poética’. “O pensamento que me rodeava era: ‘se a realidade pode nos ferir e afetar nossa ficção, será que não podemos fazer o caminho inverso também e ferir a realidade com o que criamos?’ Sendo assim, trabalhei essa ideia de que a palavra também poderia ser uma arma, o tempo todo no livro trabalho essa imagem, deixo até a reflexão de que o ‘leitor ideal’ talvez seja aquele a quem podemos ferir com nosso texto”, comenta.

Já a ideia de ‘moradia poética’ expande essa metáfora, sugerindo que a ficção pode se constituir como um espaço físico, uma casa inventada e habitada. Nas palavras de Rosa: “Para além dessa imagem, pensando na ideia de uma ‘moradia poética’, isso caberia na visão de que a ficção além de poder ferir a realidade, ela pode também moldá-la, ou seja, estar na ficção enquanto espaço físico aqui também passa a ser possível, e essas moradias vão sendo inventadas, habitadas e abandonadas durante o percurso do Trote”.

Expectativas e planos de divulgação

Ao ser questionado sobre suas expectativas em relação ao impacto do livro, o autor se mostra cauteloso, preferindo manter as expectativas baixas. Ele reconhece que o caráter experimental da obra, que comunica com a ideia de um ‘texto nômade’ e atravessa as fronteiras entre gêneros literários, pode representar um desafio para o público leitor, mas acredita que essa tendência de obras que dialogam com a cultura contemporânea tende a se fortalecer.

O livro está atualmente em pré-venda pela editora Cachalote, com o link disponível em https://benfeitoria.com/projeto/trote  A previsão é que o livro seja entregue aos leitores no próximo mês. Após a pré-venda, o autor planeja lançar o livro inicialmente em Goiânia, com sessões de autógrafos e celebrações com os leitores. Em seguida, organizará lançamentos presenciais em outros estados brasileiros para interagir com o público.

Trecho de ‘segunda bala’

>no dia 5 de dezembro

me proponho a encontrar a chuva em ficção, quero escrever um poema

são pedro é quem escreve a chuva

ele abre as comportas do céu e deixa que os cavalos

saiam em trote

os cavalos no telhado

o barulho da chuva

são a ficção dele

>no dia 5 de dezembro me proponho então

a encontrar o trote em ficção, quero escrever um poema,

mas o trote de verdade não me deixa pensar

então que são pedro me escute retire os cavalos do pasto quero adestrá-los onde o poema habita,

ele me ouve, ele fecha as comportas, ele diz

é o silêncio

quem está caindo do céu agora

então as comportas do poema se abrem

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