A realidade por trás de ‘Green Book: O Guia’

Indicado ao Oscar 2019 como Melhor Filme, enredo da trama apresenta o racismo na década de 1960 nos Estados Unidos

Postado em: 26-01-2019 às 06h00
Por: Sheyla Sousa
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Indicado ao Oscar 2019 como Melhor Filme, enredo da trama apresenta o racismo na década de 1960 nos Estados Unidos

Guilherme Melo*

A comédia dramática Green Book: O Guia (Green Book, EUA, 2018) nem parece que é dirigida por um dos responsáveis por filmes como Débi & Lóide: Dois Idiotas em Apuros e Eu, Eu Mesmo e Irene.  A história contada pelo diretor Peter Farrelly, que recebeu cinco indicações ao Oscar 2019, mostra um motorista ítalo-americano durão, do bairro do Bronx, que acaba responsável por levar um aclamado pianista negro de Nova York, através do turbulento território sulista no ano de 1962, e captura a fórmula em sua essência, servindo como um importante e tocante olhar sobre raça e classe na América, do tipo que os estúdios praticamente já não produzem mais. Trata-se de uma óbvia porém altamente apreciável obra de época, que arremessa o espectador para uma outra era do cinema de Hollywood, renascida neste novo século por meio do talento de dois dos melhores atores, atualmente em atividade, que elevam a forma didática com que a história é contada para patamares muito mais altos.

Green Book – O Guia é um caso que se vale do selo de ‘história real’ para se aproximar do público com uma narrativa sobre aceitação (de si e do outro). O longa acompanha a viagem do pianista Don Shirley (Mahershala Ali) e seu motorista, Tony Vallelonga (Viggo Mortensen) pelo sul dos EUA durante os anos de segregação – o título é uma referência ao guia de viagem que indicava para os afro-americanos os hotéis e restaurantes em que seriam aceitos. Shirley é um músico sofisticado, Vallelonga é um italiano brucutu. No caminho, os dois vencem seus preconceitos, evoluem e criam uma amizade improvável. Acreditar na veracidade desses eventos adiciona uma boa dose de esperança e alívio em quem assiste – é possível acreditar que o ser humano pode se transformar positivamente.

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Provando mais uma vez ser capaz de atuar em qualquer material ao qual é apresentado, Viggo Mortensen (de Capitão Fantástico), adiciona mais um nível às suas habilidades camaleônicas no papel do malandrão Tony Lip. Conhecido por não ser muito chegado a conversa fiada, Tony está disposto a fazer de tudo para sustentar sua família. Ele, porém, acabou de perder o emprego que tinha em uma casa de shows, e agora está precisando urgente mente de uma nova fonte de renda. Então é convocado para uma ‘entrevista’ com o influente pianista dr. Don Shirley (Mahershala Ali, vencedor do Oscar de Melhor Ator Coadjuvante por seu papel no drama Moonlight: Sob a Luz do Luar), que oferece a Tony dois meses de serviço como seu motorista, com a missão de guiá-lo em uma tour de concertos que passará através de vários estados do sul dos Estados Unidos.

O filme é acusado, pelos críticos, de imprecisões históricas pelo seu retrato não tão explícito da situação do sul dos EUA na década de 1960 e da própria amizade entre Shirley e Vallelonga. Mesmo que as acusações sejam justas, reduzir o filme a essa fiscalização factual é fechar os olhos para a capacidade de Farrelly, que também assina a direção, em criar uma fábula inspirada por elementos reais. Green Book é, no fim das contas, muito mais do que um filme baseado em fatos.

Não há intenção, seja pelo tom dos diálogos, pela fotografia cheia de cor de Sean Porter ou pela trilha sonora nostálgica de Kris Bowers, em criar uma estética documental. Farrelly deixa sempre aberto o apelo mágico da história, que ganha consistência pelas atuações carismáticas de Ali e Mortensen. O jeito bruto do motorista se mistura a austeridade de Don Shirley em situações cômicas e dramáticas das quais o filme extrai. Não da exatidão dos acontecimentos, mas pela forma como dois homens completamente diferentes aprendem a conviver em um país que, até hoje, não captou essa lição. 

Assim como Fargo, o ‘baseado em uma história real’ que acompanha Green Book pode ser uma forma de manipulação sentimental, o que não é nenhum absurdo em uma arte que se vale na sua essência da capacidade de brincar com a percepção do público – desde que os irmãos Lumière fizeram a plateia temer por suas vidas com a exibição de A Chegada do Trem na Estação. No cinema, a verdade está na intenção, e a de Green Book é tornar crível por uma jornada aprazível, em um período sombrio, que mesmo o pior dos traços – o preconceito – pode ser superado e dar espaço para um final feliz. 

*Integrante do programa de 

estágio do jornal O Hoje.

 

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