Segunda-feira, 01 de julho de 2024

‘A Favorita’ narra a disputa de duas mulheres para chamar atenção de outra

Yorgos Lanthimos cria sátira espirituosa sobre a realeza e suas inseguranças

Postado em: 02-02-2019 às 06h00
Por: Sheyla Sousa
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Yorgos Lanthimos cria sátira espirituosa sobre a realeza e suas inseguranças

GUILHERME MELO*

Corrida de patos, degustação de abacaxis, 17 coelhos, bolos azuis. No meio disso tudo, muita extravagância, característica da opulenta corte inglesa do século 18, e uma guerra entre França e Inglaterra. A Favorita (The Favourite, 2018) conta a história de duas mulheres que disputam a atenção e o afeto da frágil rainha Anne (Olivia Colman): a implacável duquesa Lady Sarah (Rachel Weisz) e a carismática nova serva do palácio, Abigail (Emma Stone). Dentre muitos dos atributos e pormenores que conferem à produção o título de obra de arte, se destacam: atuação impecável e roteiro muito bem construído que foge dos clichês. 

A começar pela vencedora do Globo de Ouro de Melhor Atriz em Comédia ou Musical, Olivia Colman está em uma das melhores performances de sua carreira. Com longos closes e protagonista de cenas indigestas, a atriz que dá vida à rainha Anne consegue, ao mesmo tempo e com muito sucesso, ser um ponto focal dramático no enredo, em ocasião de suas frequentes doenças causadas tanto por má alimentação quanto por transtornos psicomentais, e, também, ser um alívio cômico em momentos de tensão quase palpável. E é importante ressaltar que exerce todo esse domínio de cena e de personagem em uma cadeira de rodas e em vestes que gritam luxo e desconforto, vibrando seu talento, mesmo em condições adversas e limitantes.

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Além disso, Colman performa uma rainha que é mãe de 17 coelhos, um para cada filho que perdeu ainda em estágio de gestação, e dona de fortes tendências homossexuais, o que, na Inglaterra da época, era motivo suficiente para execução. Ainda com tanta carga dramática, o desenrolar da personagem não se limita a essas questões – diferentemente de muitos roteiros que encontramos por aí afora, mas as usa para endossar e compor uma personagem tão complexa e tão bem encarnada. 

A duquesa vivida por Rachel Weisz não fica para trás em atuação e complexidade: indicada para Melhor Atriz Coadjuvante no Globo de Ouro, Weisz interpreta uma cortesã que não somente é amante, amiga de infância e conselheira da rainha, mas que também governa o país com mão de ferro enquanto Anne ocupa o trono. É ela quem sopra nos ouvidos da monarca, confusa, inexperiente e insegura, e a influencia a seguir os movimentos que ela acredita serem os melhores no que diz respeito guerra contra a França.

Também é Lady Sarah quem mostra uma força inabalável, em especial quando percebe que, aos poucos, Abigail vai tomando seu posto privilegiado ao lado da rainha, e quem mais conquista a compaixão do público: se, no início, ela era tida como uma manipuladora frívola que se aproveitava do amor e da fragilidade da rainha para comandar a monarquia inglesa, no fim, mostra-se como uma amante apaixonada e uma amiga fiel que dedicou muito de si para a Inglaterra e que foi substituída por Abigail. É preciso muita habilidade artística e muito domínio de atuação para personificar tamanha complexidade e esfericidade de personagem com tanta maestria.

Assim como Weisz, Emma Stone não erra e escancara o potencial artístico que a conferiu o Oscar de Melhor Atriz por La La Land: Cantando Estações (La La Land, 2016). Ao encarnar Abigail, prima de Sarah e dama da alta sociedade inglesa que se viu forçada a assumir um cargo de criada por conta de desgraças financeiras em sua família, ela faz valer sua imagem de verdadeira camaleoa por conseguir interpretar com perfeição inúmeros papéis distintos ao longo de sua carreira. Stone constrói uma personagem carismática, segura, manipuladora e enérgica para pintar o quadro clássico de alpinistas sociais que não medem esforços para atingir quaisquer objetivos. Ela surge como fiel a seus próprios códigos morais, mas, aos poucos, os abandona relutante para ganhar terreno no gosto da rainha e para subir posições na nobreza, se tornando amante da monarca, sua conselheira e amiga, e esposa de Samuel Masham (Joe Alwyn), Barão de Masham.

Contudo, tal como aconteceu com Colman e Weisz, Emma Stone dá vida a uma personagem de tamanha complexidade que é muito difícil enquadrá-la em padrões estereotipados de mulheres em filmes de época. A narrativa é construída e vivida de tal forma que o público simpatiza mesmo com suas piores artimanhas, visto que ele a acompanha desde o início e pode, quase que literalmente, sentir na pele os maus-tratos conferidos à criadagem do castelo, como dormir em quartos abarrotados de pessoas, pauladas nas costas, queimaduras por conta de produtos fortíssimos de limpeza e o medo constante de estupros.

Muito se deve, também, à construção de um roteiro impecável, que dá chance à evolução individual de cada personagem e que não abre espaço para clichês e estereótipos batidos. Um exemplo disso está na mensagem nem tão velada que o filme passa sobre o mundo monárquico: ainda que luxuoso, ele não é nobre. Com cenas destinadas a corrida de patos, coelhos correndo no quarto da  rainha, banhos de lama, tomates sendo atirados por diversão em um bobo da corte nu, vômitos em vasos ornamentais, palavras de baixo calão e vulgaridades, subentende-se que A Favorita busca retratar o luxo criticamente e sem aderir a ele. Isso se comprova, também, pela direção do filme, com o uso de lentes grande-angulares, que causam certo estranhamento e distorção da imagem nas extremidades, semelhante a um olho-mágico, e com uma trilha sonora que não passa despercebida, sendo muitas vezes incômoda e desagradável. Por mais bela que seja a vida de privilégios dentro da monarquia – e beleza é o que não falta nos figurinos, composição de cenário e direção de arte como um todo –, o espectador passa a torcer o nariz para esse mundo e a concebê-lo como artificial e pobre de espírito, ainda que rico nas aparências.

Dividido em atos, o longa poderia muito bem ter sido a versão cinematográfica de uma peça de teatro shakespeariana. Com pitadas certas de humor e drama, atuações primorosas, roteiro bem- amarrado e construído e direção de arte feita com muito esmero, não é surpresa que tenha sido tão aclamado por inúmeras premiações, tampouco que tenha recebido tantas indicações ao Oscar, incluindo Melhor Filme, Melhor Atriz para Colman e Melhor Atriz Coadjuvante para Stone e Weisz, Melhor Figurino, Melhor Roteiro Original e Melhor Fotografia.

*Integrante do programa de estágio do jornal O HOJE

 

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