Conheça a curiosa vida da autora de ‘O Morro dos Ventos Uivantes’

Este clássico da literatura inglessa foi um dos mais vendidos no Brasil, em 2020, e é envolto de mistérios quando o assunto é sua autora

Postado em: 14-07-2023 às 12h05
Por: Cecília Epifânio
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Conheça a curiosa vida da autora de 'O Morro dos Ventos Uivantes'

Na Inglaterra de 1818, a Revolução Industrial estava engatinhando, o exército dava uma respirada após sucessões de conflitos pela Europa e mulheres precisavam assinar obras literárias sob pseudônimos masculinos. 1818 também foi o ano em que Emily Brontë deixou sua marca na literatura mundial.

Poetisa e autora do clássico O Morro dos Ventos Uivantes (1847) – que foi assinado pelo nome de Ellis Bell – a jovem de Yorkshire deixou poucos registros de seu enorme talento para a escrita; aliás, o clássico gótico foi o seu único filho. E, vira e mexe, Emily Brontë retorna aos rankings de best-sellers, em pleno século 21. Como é o caso da lista da Exame, onde o título fechou 2020 como o quinto mais ventido do Brasil.

Há alguns anos, o clássico de Emily ganhou um empurrãozinho de Crepúsculo, uma série de livros (que virou filme) da escritora Stephanie Meyes. Isso porque O Morro dos Ventos Uivantes é o livro favorito da protagonista, Bella Swan. Isso fez com que um bom número de jovens adolescentes que nunca ouviram falar na obra, correram para conseguir um exemplar.

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Muito mais tágico que o açucarado romance de Edward e Bella, a obra de Brontë narra uma história de amor entre os irmãos adotivos Catherine e Heathcliff, ambos muito distantes dos ideais pueris românticos que tiram suspiros por aí. Ela é uma moça egoísta e obstinada, ele, groceiro e atroz. O noivo de Cathy (como é carinhosamente chamada por Heathcliff), Edgar Linton, rival do irmão adotivo da moça, é a gota d’água para que o “mocinho” abandone a fazendo Morro dos Ventos Uivantes, a qual, mais tarde, retorna rico e com uma enorme sede de vingança por ter sido privado pelo irmão de Cathy, Hareton Earnshaw, de viver na presença de sua amada.

É um pouco difícil imaginar o que a jovem Emily teria achado ao ver sua trágica história de amor acompanhar uma narrativa de vampiros – até porque, Drácula surgiu em 1897, quarenta anos depois de O Morro dos Ventos Uivantes. Mas, muito mais do que uma questão cronológica, Emily Brontë é um grande ponto de interrogação, assim como suas peças literárias – existem poucos registros sobre ela por aí.

Sem nunca ter se casado, a quinta de seis filhos do casal Patrick Brontë e Mariana Branwell foi professora aos 20 anos, mas abandonou sua profissão quando passou a ter problemas de saúde causados pela extensiva jornada de trabalho de 17 horas diárias. No entanto, o que se sabe sobre sua personalidade é fruto de escritos da irmã mais velha, Charlotte Brontë, autora de Jane Eyre através do pseudônimo de Currer Bell.

Ao que parece, Emily era uma garota excêntrica, reclusa, introvertida e não era muito ligada a amores românticos e preferia a companhia de seu cachorro.

“Embora seus sentimentos pelos que a cercavam fossem benevolentes, relações com eles ela nunca procurou, nem, com poucas exceções, as experimentou”, escreveu Charlotte em prólogo para a edição de O Morro dos Ventos Uivantes de 1850. Duzentos anos de duvidas acabaram por solidificar a imagem de “esquisitona”, embora uma biografia escrita por Claire O’Callaghan busque regenerar essa reputação. De acordo com a pesquisadora, Emily poderia ser tímida e reservado, mas não merecia o “título” que lhe foi atribuído.

“Essas imagens ‘fundadoras’, baseadas em opiniões alheiras, foram ampliadas, retrabalhadas, dramatizadas e amplificadas ao ponto de se tornarem míticas até hoje”, disse Claire ao jornal britânico The Guardian. Emily Brontë foi descrita a partir de diversos ângulos, a maioria negativos: ora “uma solteirona séria, antiquada e odiosa que vagava pelas charnecas de Yorkshire socinha com seu cachorro” ora “uma garota-mulher dolorosamente tímida e socialmente desajeitada que ficava doente sempre que saía de casa”. Também existia a ideia de que ela era “teimosa e desafiadora que voluntariamente conteve diversos males físicos e mentais”, ou “uma alma etérea frágil demais para suportar o mundo real”. Claire argumenta que os mitos passam uma ideia de que ela era “estranha” de forma hostil e estigmatizante, a ponto de enterrarem a verdadeira Emily por debaixo de um tapete de opiniões incertas.

As três irmãs Brontë, retratadas por Patrick Brontë. Da esq. para dir.: Anne, Emily e Charlotte
Foto: Patrick Branwell Brontë/ GettyImages

Foi dessa reputação que surgiu o apelido “a mais estranha das três estranhas irmãs Brontë”, cunhado pelo poeta Ted Hughes em uma referência às bruxas shakesperianas da peça Macbeth, que profetizavam o destino dos principais personagens do enredo. O trio era formado por Charlotte, Emily e a caçula Anne Brontë, dona de um dos primeiros livros feministas da história, A Senhor de Wildfell Hall. Mas, acontece que de profetas as irmãs só tinhasm o espírito de vanguarda: em suas obras, as protagonistas feminas ensejam uma independência impraticável para a época de 1800 e tanto. Inclusive, é de Jane Eyre a célebre frase “Se tivesse asas e liberdade, voaria mais alto que as nuvens”.

Com a morte precoce de sua mãe, vítima de câncer, as meninas passaram a ser criadas com o pai, um pastor protestante que conseguiu sair da pobreza graças a uma inteligência e habilidade para escrita. Ao que se sabe, ele só dedicou atenção e recursos para a educação de seu filho homem, deixando as garotas sob os cuidados de internatos de caridade.

Apesar de serem “rejeitadas” pelo pai, as garotas sempre foram incentivadas, por ele, a ler e escrever – o que era raro para a época. Emily escreveu sua obra-prima aos 28 anos e, ao que se sabe, virgem e sem ter vivido um grande romance que pudesse ter lhe inspirado – a não ser pelo que ouvia por aí.

Talvez um olhar psicanalista, anacrônico, diria que Emily projetou em Cathy o que gostaria de ter feito na vida real, desde a liberdade para dar respostas atravessadas até a possibilidade de viver amores tragicamente intensos – e talvez o tivesse, não fosse sua precoce morte aos 30 anos, em 1848, vítima de um estado de saúde fragilizado por uma constipação grave, tuberculose e relutância em aceitar ajuda médica. Em vida, Emily viu O Morro dos Ventos Uivantes vender apenas duas cópias.

Mal imaginava ela que seu único livro entraria para o cânone dos clássicos da literatura inglesa — e se tornaria o livro de cabeceira de uma garota apaixonada por um vampiro.

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