Conheça a curiosa vida da autora de ‘O Morro dos Ventos Uivantes’
Este clássico da literatura inglessa foi um dos mais vendidos no Brasil, em 2020, e é envolto de mistérios quando o assunto é sua autora
Por: Cecília Epifânio
Na Inglaterra de 1818, a Revolução Industrial estava engatinhando, o exército dava uma respirada após sucessões de conflitos pela Europa e mulheres precisavam assinar obras literárias sob pseudônimos masculinos. 1818 também foi o ano em que Emily Brontë deixou sua marca na literatura mundial.
Poetisa e autora do clássico O Morro dos Ventos Uivantes (1847) – que foi assinado pelo nome de Ellis Bell – a jovem de Yorkshire deixou poucos registros de seu enorme talento para a escrita; aliás, o clássico gótico foi o seu único filho. E, vira e mexe, Emily Brontë retorna aos rankings de best-sellers, em pleno século 21. Como é o caso da lista da Exame, onde o título fechou 2020 como o quinto mais ventido do Brasil.
Há alguns anos, o clássico de Emily ganhou um empurrãozinho de Crepúsculo, uma série de livros (que virou filme) da escritora Stephanie Meyes. Isso porque O Morro dos Ventos Uivantes é o livro favorito da protagonista, Bella Swan. Isso fez com que um bom número de jovens adolescentes que nunca ouviram falar na obra, correram para conseguir um exemplar.
Muito mais tágico que o açucarado romance de Edward e Bella, a obra de Brontë narra uma história de amor entre os irmãos adotivos Catherine e Heathcliff, ambos muito distantes dos ideais pueris românticos que tiram suspiros por aí. Ela é uma moça egoísta e obstinada, ele, groceiro e atroz. O noivo de Cathy (como é carinhosamente chamada por Heathcliff), Edgar Linton, rival do irmão adotivo da moça, é a gota d’água para que o “mocinho” abandone a fazendo Morro dos Ventos Uivantes, a qual, mais tarde, retorna rico e com uma enorme sede de vingança por ter sido privado pelo irmão de Cathy, Hareton Earnshaw, de viver na presença de sua amada.
É um pouco difícil imaginar o que a jovem Emily teria achado ao ver sua trágica história de amor acompanhar uma narrativa de vampiros – até porque, Drácula surgiu em 1897, quarenta anos depois de O Morro dos Ventos Uivantes. Mas, muito mais do que uma questão cronológica, Emily Brontë é um grande ponto de interrogação, assim como suas peças literárias – existem poucos registros sobre ela por aí.
Sem nunca ter se casado, a quinta de seis filhos do casal Patrick Brontë e Mariana Branwell foi professora aos 20 anos, mas abandonou sua profissão quando passou a ter problemas de saúde causados pela extensiva jornada de trabalho de 17 horas diárias. No entanto, o que se sabe sobre sua personalidade é fruto de escritos da irmã mais velha, Charlotte Brontë, autora de Jane Eyre através do pseudônimo de Currer Bell.
Ao que parece, Emily era uma garota excêntrica, reclusa, introvertida e não era muito ligada a amores românticos e preferia a companhia de seu cachorro.
“Embora seus sentimentos pelos que a cercavam fossem benevolentes, relações com eles ela nunca procurou, nem, com poucas exceções, as experimentou”, escreveu Charlotte em prólogo para a edição de O Morro dos Ventos Uivantes de 1850. Duzentos anos de duvidas acabaram por solidificar a imagem de “esquisitona”, embora uma biografia escrita por Claire O’Callaghan busque regenerar essa reputação. De acordo com a pesquisadora, Emily poderia ser tímida e reservado, mas não merecia o “título” que lhe foi atribuído.
“Essas imagens ‘fundadoras’, baseadas em opiniões alheiras, foram ampliadas, retrabalhadas, dramatizadas e amplificadas ao ponto de se tornarem míticas até hoje”, disse Claire ao jornal britânico The Guardian. Emily Brontë foi descrita a partir de diversos ângulos, a maioria negativos: ora “uma solteirona séria, antiquada e odiosa que vagava pelas charnecas de Yorkshire socinha com seu cachorro” ora “uma garota-mulher dolorosamente tímida e socialmente desajeitada que ficava doente sempre que saía de casa”. Também existia a ideia de que ela era “teimosa e desafiadora que voluntariamente conteve diversos males físicos e mentais”, ou “uma alma etérea frágil demais para suportar o mundo real”. Claire argumenta que os mitos passam uma ideia de que ela era “estranha” de forma hostil e estigmatizante, a ponto de enterrarem a verdadeira Emily por debaixo de um tapete de opiniões incertas.
Foi dessa reputação que surgiu o apelido “a mais estranha das três estranhas irmãs Brontë”, cunhado pelo poeta Ted Hughes em uma referência às bruxas shakesperianas da peça Macbeth, que profetizavam o destino dos principais personagens do enredo. O trio era formado por Charlotte, Emily e a caçula Anne Brontë, dona de um dos primeiros livros feministas da história, A Senhor de Wildfell Hall. Mas, acontece que de profetas as irmãs só tinhasm o espírito de vanguarda: em suas obras, as protagonistas feminas ensejam uma independência impraticável para a época de 1800 e tanto. Inclusive, é de Jane Eyre a célebre frase “Se tivesse asas e liberdade, voaria mais alto que as nuvens”.
Com a morte precoce de sua mãe, vítima de câncer, as meninas passaram a ser criadas com o pai, um pastor protestante que conseguiu sair da pobreza graças a uma inteligência e habilidade para escrita. Ao que se sabe, ele só dedicou atenção e recursos para a educação de seu filho homem, deixando as garotas sob os cuidados de internatos de caridade.
Apesar de serem “rejeitadas” pelo pai, as garotas sempre foram incentivadas, por ele, a ler e escrever – o que era raro para a época. Emily escreveu sua obra-prima aos 28 anos e, ao que se sabe, virgem e sem ter vivido um grande romance que pudesse ter lhe inspirado – a não ser pelo que ouvia por aí.
Talvez um olhar psicanalista, anacrônico, diria que Emily projetou em Cathy o que gostaria de ter feito na vida real, desde a liberdade para dar respostas atravessadas até a possibilidade de viver amores tragicamente intensos – e talvez o tivesse, não fosse sua precoce morte aos 30 anos, em 1848, vítima de um estado de saúde fragilizado por uma constipação grave, tuberculose e relutância em aceitar ajuda médica. Em vida, Emily viu O Morro dos Ventos Uivantes vender apenas duas cópias.
Mal imaginava ela que seu único livro entraria para o cânone dos clássicos da literatura inglesa — e se tornaria o livro de cabeceira de uma garota apaixonada por um vampiro.