Você sabe o que é bibliopegia antropodérmica?

Um pequeno spoiler: é uma técnica bastante macabra para encadernar livros (e não deve ser incentivada)

Postado em: 31-07-2023 às 14h14
Por: Cecília Epifânio
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Você sabe o que é bibliopegia antropodérmica? | Foto: History/ Reprodução

Você conhece uma técnica chamada Bibliopegia antropodérmica? Bom, seguindo a etimologia das palavras, quer dizer “a arte de encadernar livros” e algo “descrito ou concebido em forma humana ou com atributos humanos”. Caso tenha unido as peças, percebeu que é uma prática arrepiante de encadernar livros com pele humana.

Essa ideia parece ter saído de um filme de terror, mas acreditem, é uma prática real! Ao longo da história, alguns individuos decidiram transformar os livros em verdadeiras obras-primas do universo macabro. Por que não as páginas de uma boa história com pedaços de pele humana?

Mas antes de seguir esse texto, alguns avisos devem ser feitos! Embora possa parecer fascinante do ponto de vista histórico e cultural, não podemos ignorar a falta de respeito e ética por trás dessa prática. Os livros devem ser apreciados por seu conteúdo e valor intelectual, não por sua capa feita de restos humanos. É uma prática condenável e que não deve ser incentivada.

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Origens subcutâneas

O termo “Bibliopegia antropodérmica” é um daqueles nomes que parecem ter saído diretamente de um livro de feitiços. Mas não se engane, não são os bruxos que estão por trás dessa prática sinistra. O nome é derivado do grego, combinando “anthropos” (que significa “humano”) e “derma” (que significa “pele”), com “Bibliopegia” um sinônimo para encadernar. Ou seja: livros encadernados com pele humana. É uma mistura bastante bizarra de arte, morbidez com toque de insanidade literária.

livro de pele humana
Foto: History/ Reprodução

Existem diversas pistas históricas que nos levam a essa prática hedionda. Por muitos e muitos anos foi tratada como lenda e teria sido praticada na Revolução Francesa. De fato, existem muitos livros seculares com anotações em seu interior dizendo “encadernado com pele humana”. Mas nada tinha sido confirmado, até o momento em que alguns pesquisadores decidiram dar uma olhada mais de perto.

O mais “chocante” é que os responsáveis por essa prática não tinha nada a ver com ocultismo ou feitiçaria. Os “donos” dessa prática eram, na verdade, médicos. Estamos falando de alguns médicos do século 19 que tinham uma veia artística bastante peculiar.

Parece que os bons doutores gostavam de um souvenir bastante macabro. E, quem diria, não era preciso ser líder de culto secreto ou feiticeiro para entrar nessa moda mórbida. Tudo o que eles precisavam era de um condenado pelo Estado e pronto, um novo exemplar macabro estava pronto para enfeitar a prateleira.

Um livro de amor e morte

Eliza Balsom, uma jovem aparentemente comum dos subúrbios de Bristol, Inglaterra, tinha um interesse que para muitos muitos era contemporâneo, mas que sempre existiu aqui e ali: ela tinha uma paixão por bad boys (quem nuca). E John Horwood, um jovem local, se encaixava perfeitamente nesse perfil. Aos 16 anos, John era conhecido por causar distúrbios, vandalismo e, muito provavelmente, ser membro da Gangue Cock Road, que aterrorizava cidadãos. E foi em 1820 que o caminhos dos jovens se cruzaram.

O relacionamento não durou muito. Eliza partiu pra outra e John, com seu temperamento de uma panela de pressão, partiu pra cima. Ele assediou a garota várias vezes entre 1820 e 1821, chegando ao ponto de jogar algum tipo de ácido nela. E isso não foi o pior. Em 25 de janeiro de 1821, John viu Eliza com outro rapaz. Ele pegou uma pedra e arremessou. E foi com esse gesto que ele selou seu destino e o da garota.

Eliza sofreu um leve corte na têmpora, perto de um dos olhos. Foi uma ferida pequena mas que permitiu a entrada de uma infecção. A jovem caminhou 16 quilômetos até a Bristol Royal Infirmary em busca de uma cura, mas acabou encontrando o sr. Richard Smith. O tal médico insistiu para que a garota fosse internada para tratar uma suposta fratura no crânio. Mas, infelizmente, a situação de Eliza só piorou. E então o proativo dr. Smith decidiu realizar o tratamento da infecção de dentro do crânio.

A cirurgia não ocorreu nada bem e, no dia 17 de fevereiro de 1821, Eliza morreu. o médico alegou que um abscesso provocado pelo impacto da pedra foi a responsável pela morte, e deu o nome de John para a polícia. John Horwood foi preso, julgado e condenado por assassinato, como testemunhou o próprio dr. Smith. Uma forca improvisada foi montada e uma enorme quantidade de gente se reuniu prara assistir ao enforcamento. No dia 13 de abril, dois dias após o julgamento e três de seu aniversário de 18 anos, John cumpriu sua pena de morte.

O dr. Richard Smith solicitou que o corpor de John fosse entregue a ele para uma dissecação pública. O interesse do médico foi tão grande que ele armou uma partida durante a noite, com medo de que os amigos de John tentassem recuperar o corpo do jovem.

Logo após a dissecação, a pele de John Horwood foi curtida e o doutor a levou para o encadernador. O livro reúne documentos do assassinato, julgamento, execussão e dissecação. Sua capa traz em baixo relevo a ilustração de uma forca e a inscrição em latim “Cutis Vera Johannis Horwood”, ou seja, “A Verdadeira Pele de John Horwood”. O dr. Smith até podia não ser um bad boy, mas talvez seria um nerd sádico.

livro de pele humana bristol
Foto: Bristol Live/ Reprodução

Hoje, esse livro macabro está nas mãos da cidade de Bristol e repousa em seus arquivos públicos. Mas pode ser que o horror desses acontecimentos esteja além do relatado em suas páginas. Revisões posteriores do caso, incluindo um exame minucioso do crânio da vítima, lançam dúvidas sobre a validade do julgamento e até mesmo sobre a autoria do crime. Será que o tal abscesso que levou a infeliz morte de Eliza foi realmente causado pelos “procedimentos” do dr. Smith, como alegou a defesa na época? Bom, os descendentes de John Horwood não deixam a história morrer e estão determinados a trazer à luz a verdade.

Foi somente em 2011, 190 anos após a execução, que os ossos de John foram sepultados. Pois acontece que o excêntrico dr. Richard Smith, além de sua criativa encadernação, também fez questão de manter o esqueleto de John em sua própria casa até o seu último dia de vida.

Matéria prima de sobra

Existem muitos outros livros encadernados com a pele de condenados executados. Parece que tal matéria prima era abundante por volta do século 19. Uma das obras mais conhecidas traz o relato de um dos crimes mais célebres. o lendário Assassinato do Celeiro Vermelho.

No interior da Inglaterra, em 1827, a jovem Maria Marten foi brutalmente assassinada por seu amante, William Corder, no tal celeiro vermelho. O casal estava planejando fugir junto, mas Corder possuia outros planos em mente.

Após enviar cartas para a família de Maria, fingindo ser a vítima, a verdade por trás do crime foi revelada quando seu corpo foi descoberto, um ano depois.

Corder foi capturado, julgado e enforcado diante de uma multidão ávida por um entretenimento sádico. Tal história serviu de alimento para a imprensa sensacionalista, inspirou canções e peças teatrais, transformando a vila onde ocorreu o crime em um ponto de peregrinação.

Muitos souvenirs do crime e do julgamento foram vendidos, desde cópias da máscara mortuária do assassino até, claro, o livro encapado com sua pele. A edição agora se encontra em exibição no Moyse’s Hall Museum, em Suffolk, no leste da Inglaterra.

livro pele celeiro vermelho
Foto: Reprodução

Talvez o livro mais famoso dessa mórbida coleção tenha seu revestimento vindo de um condenado executado. No ano de 1837, o prisioneiro americano James Allen fez sua confissão em seu leito de morte na Prisão Estadual de Massachusetts. E como último pedido, ele desejou que duas cópias de suas história fossem encadernadas com a própria pele. Generoso e um talvez tanto sentimental, James presenteou com uma das edições uma de suas vítimas, um homem que não se deixou ser roubado por Allen e que, por sua bravura, ganhou sua eterna admiração. A outra cópia deveria ser dada a seu médico. Você pode ver uma das cópias quando visitar o Ateneu de Boston, nos EUA, ou simplesmente ler a transcrição no site da instituição.

Caso esse texto também abordasse exemplares ainda sem confirmação se o couro das capas é realmente humano, poderíamos falar de livros até mais sórdidos, como os de literatura erótica. Ou até mesmo das fraudes históricas como o manuscrito árabe escrito em 1848 que se encontra na Biblioteca Newberry em Chicago.

Embora uma nota no manuscrito afirme uma procedência humana para o couro do pergaminho, basta uma inspeção de um olho treinado para atestar que se trata simplesmente de couro de bode. O que nos leva a perguntar: como identificar se a capa do meu livro favorito já andou por aí (literalmente)?

Nunca julgue um livro pela capa (ou julgue)

Se você pensou que a identificação de encadernações em pele humana é feita através de exames de DNA, como em um programa TV ou filmes, sinto lhe informar que nem chegou perto. Testar uma amostra de DNA é possível em princípio, mas o DNA pode ser destruído quando a pele é curtida. E também, ao longo do tempo o DNA se degrada e a amostra pode ser contaminada por leitores humanos.

Um dos métodos mais comuns é simplesmente treinar o olhar. Afinal, cada mamífero tem um padrão específico dos poros. Os bezerros, ovelhas, cabras, porcos e humanos, cada um desses animais possuem um desenho de folículos capilares próprio. O tratamento do couro pode até confundir em alguns casos, mas no geral é como uma impressão digital apontando a identidade da vítima.

Claro que esse é um método subjetivo e que depende da declaração de um especialista. Felizmente hoje em dia é possível contar com tecnologias estrambólicas, que conferem a credibilidade sintética capaz de sanar as dúvidas – até mesmo dos mais céticos.

Quer uma amostra de tecnologias estrambólicas? Que tal a Impressão Digital de Massa de Peptídeos (PMF)? Ou ainda a Técnica de Dessorção/Ionização a Laser Assistida por Matriz (MALDI)? Essas duas maravilhas da modernidade têm sido usadas recentemente para identificar o material das encadernações de livros.

Na MALDI uma pequena amostra é extraída da capa do livro e o colágeno é analisado por espectrometria de massa para identificar a variedade de proteínas características de diferentes espécies. Já a PMF pode identificar a pele como pertencente a um primata; uma vez que macacos quase nunca foram usados como fonte de pele para encadernações, isso implicaria pele humana.

livro de pele humana
Foto: Reprodução

Como todo mundo precisa de um hobby, há alguns anos um grupo de pesquisadores se juntou para formar o The Anthropodermic Book Project, um collab voluntário que curte identificar quais livros foram realmente encapados com a epiderme de alguém. Dos 31 livros analisados, nada menos do que 18 foram confirmados. Tudo atestado pelas tecnologias da PMF e da MALDI.

No imenso universo dos livros, encontramos histórias que nos encantam, mistérios que nos intrigam e segredos que nos arrepiam. A encadernação com pele humana é apenas mais um desses enigmas sombrios que nos convidam a explorar as profundezas perturbadoras da literatura.

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