Conheça Ângela Diniz, mineira morta em ‘legítima defesa da honra’

Socialite foi assassinada com 4 tiros em sua casa de praia no Rio de Janeiro

Postado em: 03-08-2023 às 16h07
Por: Cecília Epifânio
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Conheça Ângela Diniz, socialite mineira morta em 'legítima defesa da honra' | Foto: Acervo Estado de Minas

“Uma mulher fatal capaz de levar qualquer homem à loucura”. Essa foi a declaração usada pelo advogado Evandro Lins e Silva, responsável por defender Raul Fernando Amaral Street, mais conhecido como Doca Street, de ter matado a companheira, a socialite mineira Ângela Diniz.

Quase 48 anos depois do assassinato brutal, o caso voltou aos holofotes após o STF ter declarado inconstitucional o uso da tese de legítima defesa da honra em crimes de feminicídio ou agressão contra mulheres.

“A tese da “legítima defesa da honra” era utilizada em casos de feminicídio ou agressões contra mulher para justificar o comportamento do acusado. O argumento era de que o assassinato ou a agressão eram aceitáveis quando a conduta da vítima supostamente ferisse a honra do agressor.”, diz a matéria publicada no portal do Supremo Tribunal Federal.

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Em 2020, o assassinato de Ângela virou tema do podcast da Rádio Novelo “Praia dos Osso”, apresentado pela jornalista Branca Viana com pesquisa e produção da escritora e pesquisadora Flora Thompson-DeVeaux.

Mas afinal de contas, quem foi Ângela Diniz, a “Pantera de Minas”?

Quem foi Ângela?

Ângela Maria Fernanzdes Diniz nasceu no dia 10 de novembro de 1944, em Curvelo, região central de Minas Gerais. Ela era filha de Newton Viana Diniz e Maria do Espírito Santo Fernandes Diniz. Ângela era conhecida por ser uma moça muito bonita, charmosa, corajosa e inteligente. Aos 17 anos, casou-se com o engenheiro Milton Villas Boas, de 31 anos, com quem teve três filhos.

Foto: Acervo Estado de Minas

O relacionamento do casal durou apenas nove anos e, quando terminaram, fizeram um acordo de desquite – já que na época o divórcio não era permitido. Nesse acordo, Ângela receberia uma pensão mensal e uma casa na capital mineira, mas, a guarda de seus três filhos ficaria com o marido.

No ano de 1973, José Avelino dos Santos, conhecido como Zé Pretinho, foi assassinado com um tiro no rosto na casa de Ângela, onde ele trabalhava como caseiro e vigia. O corpo de “Zé” foi achado do lado de fora da casa, próximo à janela que dava para o quarto da socialite, e tinha uma faca na mão e estava com a braguilha aberta com sinais de ejaculação.

No início, Diniz assumiu a culpa alegando legítima defesa. Mas, após investigações, foi constatado que havia uma terceira pessoa na casa, foi aí que descobriram que Ângela era amante do milionário mineiro Arthur Vale Mendes, o Tuca Mendes, herdeiro do grupo Mendes Júnior. Em depoimento, Ângela disse que assumiu a culpa como forma de proteger Tuca, já que ele era casado e seu relacionamento com ele não era de conhecimento geral.

Tuca alegou ter visto um vulto do lado de fora da casa e, quando saiu para verificar, a pessoa o atacou, por isso ele reagiu com um tiro fatal. As reais circunstâncias do crime nunca foram esclarecidas.

Surgiram uns boatos, na época, de que Ângela e José Avelino tinham um relacionamento no qual Tuca descobriu e acabou matando o homem. Porém, pessoas próximas à socialite negaram todos esses rumores, alegando que “ela era racista demais para se relacionar com um negro”.

Também existe a hipótese de que Avelino estaria se masturbando, escondido do lado de fora da casa, enquanto observava Ângela que ao percebê-lo, acabou matando o caseiro/vigia.

No final das contas, Tuca Mendes foi condenado a dois anos com sursis, ou seja, uma suspensão condicional da pena e foi liberado.

Por conta de todo esse escândalo, Ângela e Tuca terminaram o caso, e ela decidiu sair de Minas Gerais, mudando-se para o Rio de Janeiro. Já na capital carioca, Diniz conheceu o colunista social Ibrahim Sued, com quem teve um breve relacionamento. Sued foi quem a apelidou de “Pantera de Minas”.

Reportagem estampa o apelido dado à  Ângela.
Foto: Revista O Cruzeiro

No Natal de 1974, Ângela foi visitar os filhos em Belo Horizonte e, quando voltou para o Rio de Janeiro, trouxe consigo a filha, sem avisar a família e o ex-marido. Milton Villas Boas deu queixa do sequestro. Uma semana depois, quando retornou a BH com a menina, Milton manteve o processo contra a ex-mulher, que foi condenada a seis meses de prisão pelo sequestro da filha.

Um ano depois, por meio de uma denúncia anônima, Ângel Diniz foi presa acusada de esconder mais de cem gramas de maconha em casa. Para poder responder em liberdade, Ângela admitiu ser viciada em drogas.

O casal Ângela e Doca

Ângela e Fernando do Amaral Street, conhecido como Doca Street, se conheceram em agosto de 1976 durante um jantar realizado pela elite paulistana, Logo de cara eles perceberam a grande sintonia que os envolvia. Um mês após se conhecerem, Doca abandonou a esposa e filhos para viver a paixão com Diniz. Uma paixão cercada por violentas crises de ciúmes da parte de Street. Logo o casal passou a morar juntos, com Ângela sustentando todos os luxos do casal – principalmente de Doca.

Doca Street 00
Foto: Reprodução

Em razão de seu ciúme doentio, Doca fazia com que Ângela deixasse de frequentar os lugares que amava frequentar e também a distanciou dos amigos. Doca controlava todos os atos da mulher, que logo se sentiu incomodada com essas atitudes, já que não tolerava nenhum tipo de submissão.

Foto: Estadão Conteúdo

Terror na Praia dos Ossos

Em dezembro de 1976, Ângela e Doca estavam morando na casa que a socialite tinha em Búzios, Rio de Janeiro, localizada na Praia dos Ossos. No dia 30 de dezembro, após uma acalorada discussão, Doca Street desferiu quatro tiros contra Ângela Diniz, três no rosto e um na nuca.

A casa do crime.
Foto: Arquivo do processo

O motivo do crime foi o fato de Doca não ter aceitado o fim dos quatro meses de relacionamento, razão pela qual foi considerado homicídio passional e a tese utilizada pela defesa foi a “legítima defesa da honra com excesso culposo”.

Entre vários coquetéis de vodca, Ângela passou a ficar cada vez mais desinibida, o que passou a irritar seu namorado controlador. A gota d’água para Doca Street foi quando uma alemã, Gabrielle Dayer, chegou até Diniz oferecendo os artesanatos que ela mesma confeccionava e vendia na praia. Foi nesse momento que a mulher se encantou pela estrangeira e tentou seduzi-la. Sentindo-se humilhado, Doca não aceitou o comportamento da namorada e retornaram para a casa de praia.

Como Ângela havia bebido bastante naquele dia, quando chegaram em casa, Doca foi ajudá-la a tomar banha. Mas, de alguma forma, o casal começou a brigar por conta da alemã e por todas as atrocidade que Ângela ouvia de Doca.

Após toda a confusão, já mais calma mas ainda sob o efeito do álcool, Ângela decidiu anunciar o fim do relacionamento tóxico com Doca. Inconformado com a decisão da agora ex-namorada, ele tentou convencê-la de que essa não era a sua real vontade, que era apenas o efeito do excesso de álcool em seu organismo, além de argumentar que a amava e por isso era extremamente ciumento. No entanto, Ângela estava decidida do que queria e não aceitou as desculpas de Street.

Doca juntou os pertences e foi embora. Quando estava há alguns quilômetros da casa, ele decidiu retornar para, mais uma vez, demosntrar que a decisão de Ângela era completamente precipitada.

Quando voltou, Doca encontrou Ângela descansando perto da piscina. Ele se aproximou da mulher e pediu perdão, dizendo para ela reconsiderar a decisão do término. Porém, Ângela acabou dando a resposta que Doca não queria ouvir. Ela teria dito que se ele quisesse ficar, teria que aceitar dividi-la com outros homens e mulheres.

Nessa hora, Doca ficou tomado pelo ciúme e disse que não poderia aceitat esse tipo de comportamento vindo de uma mulher, que seri “humilhante” demais para ele e que a sociedade o julgaria.

Movido pelo ódio e ciúme despertado por esssa frase, Doca aproveitou quando Ângela se levantou para ir ao banheiro e proferiu a seguinte frase: “se você não vai ser minha, não será de mais ninguém”. Após dizer isso, ele desferiu quatro tiros contra a ex- namorada e abandonou a arma, uma Beretta, ao lado do corpo da vítima.

A casa do crime em 2019.
Foto: Flora Thomson-DeVeaux

Após cometer o crime, Doca fugiu para o fugiu para o sítio da família, localizado em Paço Lago, Minas Gerais. Enquanto estava foragido, seus pais foram em busca de um advogado para lhe defender.

Julgamentos de Doca Street

Doca Street no banco dos réus, em seu primeiro julgamento.
Foto: Acervo Estado de Minas

Em 18 de outrubro de 1979, ocorreu o primeiro julgamento de Doca Street, cujo advogado contratado era o famoso criminalista Evandro Lins e Silva. Ao utilizar a tese defensiva, Lins e SIlva esmiuçou toda vida de Ângela e a transformou em uma mulher promíscua, fazendo com que Doca passasse a ser a verdadeira vítima do caso e que, de fato, Diniz merecesse a morte que teve.

Bom, estamos falando dos anos 70, um tempo onde o machismo e a opressão contra a mulher era ainda mais gritante então, a tese utilizada teve bastante sucesso. Doca foi bastante aplaudido e apoiado, enquanto Ângela, depois de morta, fosse apedrejada. Os jurados condenaram Doca Street a uma pena de dois anos de reclusão, com o direito a suspensão condicional da pena.

Inconformada, a acusação recorreu da decisão. Na época do julgamento, os movimentos feministas estavam ganhando voz e todas as mulheres se sentiram injustiçadas e começaram uma luta pela memória de Ângela Diniz – não como uma pessoa imoral, mas como uma pessoa que tem direito à vida e de fazer suas próprias escolhas.

Doca Street 04
Foto: Reprodução

Foi quando surgiu o slogan “quem ama não mata”. Até mesmo o poeta Carlos Drummond de Andrade se manifestou, escrevendo a seguinte reflexão: “Aquela moça continua sendo assassinada todos os dias e de diferentes maneira.”

Em razão disso, um novo julgamento aconteceu, em novembro de 1981, tendo como advogado de defesa do réu, o Dr. Humberto Telles. Dessa vez, o júri não entendeu que Doca agiu em legítima defesa da honra, mas sim que houve homicídio doloso qualificado, razão pela qual foi condenado em quinze anos de reclusão.

Desde então a tese de legítima defesa da honra não é aceita, por ser, o instituto da legítima defesa, incompatível com o bem jurídico honra.

Tese da ligítima defesa da honra

A tese da legítima defesa da honra era um recurso argumentativo utilizado pelas defesas de acusados de feminicídio ou agressão contra mulher para justificar o comportamento do réu.

A partir dela, a justificativa era de trazer sentido para o comportamento do assassino ou agressor caso a vítima cometesse adultério, pois a ação teria ferido sua honra, ou seja, era uma forma de o agressor atribuir o fator motivador de seu comportamento descontrolado e criminoso ao comportamento da vítima, culpando-a pelo que ele mesmo cometeu, imputando à mulher a causa de sua própria morte ou lesão.

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