Crinolina: conheça a peça íntima responsável pela morte de milhares de mulheres na era vitoriana

As irmãs Wild ficaram para a história como duas das milhares de fatalidades envolvendo a vestimenta mais amada e ridicularizada de todos os tempos

Postado em: 17-08-2023 às 17h33
Por: Cecília Epifânio
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Crinolina: conheça a peça íntima responsável pela morte de milhares de mulheres na era vitoriana | Foto: Getty Images

Em uma noite de Halloween de 1871, Emily e Mary, meias-irmãs do dramaturgo, escritor e poeta Oscar Wilde, marcaram presença em um baile em Drumaconnor House, na Irlanda.

Já para o final da noite, Emily estava dançando uma valsa com Andrew Nicholl Reid, anfitrião da festa, e, em um dos giros perto da lareira do salão, seu vestido roçou nas brasas e acabou pegando fogo.

Em vão, Reid tentou apagar as chamas; quando Mary correu para ajudá-la, ela acabou colocando fogo em seu vestido também. Alguns dias depois, ambas morreram.

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O pai das jovens, William, estava completamente perturbado, tanto é que seus “choros podiam ser ouvidos do lado de fora da casa”, como contou um amigo da família. Oscar, que aos 17 anos ainda morava com ele, ouvia o choro mais de perto.

As irmãs Wild ficaram para a história como duas das milhares de fatalidades envolvendo a vestimenta mais amada e ridicularizada de todos os tempos: a crinolina, nada mais é que as armações utilizadas sob as saias.

Foto: Reprodução

A crinolina é a “reencarnação” da anágua, uma peça bastante popular e criticada, bastante utilizada no século 18, mas possuia uma diferença: a sua criação. A estrutura das anáguas eram feitas de osso de baleia, crina de cavalo, vime, madeira e até mesmo borracha inflável. Já as crenolinas eram feitas de metal. E graças a inveção das máquinas de costura, na década de 1850, elas puderam ser produzidas em maior quantidade.

A popularidade era tanta que um ano após a crinolina com armação de aço ser patenteada em 1856, o Reino Unido importou 40 mil toneladas de aço sueco para a confecção das peças. Em uma fábrica de Sheffield, 800 mulheres produziam 8 mil crinolinas por dia, uma taxa que não acompanhava a demanda, de acordo com o livro Crinoline, Fashion’s Most Magnificent Disaster, de Brian May e Denis Pellerin.

A vestimenta era criticada pela mais famosa das enfermeiras da época, Florence Nightingale, que chamou a crinolina de “um traje absurdo e hediondo”. Ela também queria que as autoridades revelassem o número de mortes causadas pelo traje.

Ainda é muito difícil saber ao todo quantas mulheres foram vítimas dessa fatalidade. Mas, muitas publicações dão a entender que houveram milhares de mortes somente no Reino Unido causadas de forma indireta ou pelo uso do apetrecho.

Além da perigosa proximidade das saias com as chamas de velas, lareiras e brasas utilizadas para aquecer os ambientes, também existem registros de mulheres que foram arrastadas por carruagens depois que suas vastas e extensas saias enroscavam nas rodas dos veículos.

Histórias não confirmadas dizem que algumas moças que passeavam por praias no sul da Inglaterra em dia de forte ventania teriam sido erguidas pelo vento como pipas e arremessadas no mar onde moreram afogadas.

Eram frequentes notícias na imprensa sobre essas mortes e muitas vezes eram apresentadas com manchetes sensacionalistas. Por exempo, uma delas recebeu o título “Outro holocausto por crinolina” (1864). O texto também cita o legista que era crítico da vestimenta, Edwin Lankester.

“Ao longo de três anos, tantas mulheres perderam suas vidas em Londres para o fogo, principalmente por usar crinolinas, quanto as que foram sacrificadas em Santiago.”

O legista se referia ao trágico incêndio da Inglesia de la Compañía, no Chile, no ano de 1863, onde cerca de 2 mil mulheres morrera, já que seus volumosos vestidos dificultava a fuga.

Quando o The New York Times relatou pela primeira vez o fenômeno das mortes relacionadas à crinolina em 1858, o jornal americano observou que o Court Journal de Londres havia registrado “nada menos que 19 mortes por essa causa na Inglaterra entre 1º de janeiro e meados de fevereiro”.

“Certamente uma média de três mortes por semana devido à queima de crinolinas deve assustar a mais imprudente do sexo privilegiado.”

Apesar de tudo, por qual motivo as roupas íntimas femininas eram tão populares?

O perigo

Segundo a historiadora Alison Matthews David em seu livro Vítimas da Moda (2015), a era vitoriana ficou bastante marcada pelos chapéus feitos com mercúrio e tecidos tingidos com corantes que possuiam uma imensa quantidade de arsênico. Mas esses venenos afetavam mais os responsaveis pela fabricação dos artigos de moda.

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Além disso, as mortes não eram tão espetaculares ou rápidas quanto as das mulheres queimadas vivas. No entanto, como a revista satírica Anti-Teapot Review apontou em 1864, o problema não começou com crinolinas.

“As anáguas antigas (…) eram imóveis se pegassem fogo. E elas pegaram fogo com mais frequência do que muitos imaginam, só que naqueles dias não havia dezenas de jornais de Londres, famintos para relatar acidentes domésticos nas épocas de falta de notícia.”

Mesmo assim, ainda é difícil entender como tantas mulheres queriam usar algo tão pouco prático e, que quando não pegava fogo, atrapalhava muito na mobilidade das moças e causava quedas quando o vento estava mais forte.

O erro

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Apesar das crinolinas atingirem quase dois metros de circunferência, o tamanho das peças não era tão exagerado assim. Muitas fotos e charges feitas na época faziam parte de uma campanha de opiniões majoritariamente masculinas que ridicularizavam as vestimentas.

E enquanto para alguns era uma vestimenta que, como disse a historiadora Helene Roberts, “ajudou a moldar o comportamento feminino no papel de ‘escrava primorosa'” e “literalmente transformou as mulheres em pássaros enjaulados cercados por aros de aço”, curiosamente, as escritoras da época descreviam a crinolina como libertadora.

As saias estilo Império que eram usadas no início daquele século eram tão estreitas que era difícil andar. “Eram calças com apenas uma perna em vez de duas”, observou uma escritora do The Examiner semanalmente em 1863.

Já nas décadas seguintes, diversas anáguas foram adicionadas para alargá-las, até que ficasem pesadas, imanejáveis e até mesmo anti-higiênicas. Por esses motivos, quando a crinolina chegou, ela foi muito aplaudida devido seu avanço tecnológico prático: todas aquelas camadas que ancoravam as mulheres ao chão foram substituídas por uma única infraestrutura.

“A crinolina é outra palavra para liberdade”, disse a mesma escritora. Isso as camponesas já haviam descoberto há muitos séculos, quando foram criadas as primeiras versões de armações que levantavam as saias e deixavam as pernas livres.

E essa era também a opinião de muitas das mulheres sufragistas, que anos depois lutaram pelo direito feminino ao voto, para surpresa de Florence Nightingale, que achava “alarmantemente peculiar” que aquelas que defendiam a utilidade geral das mulheres para o mundo se vestissem de uma maneira que as tornasse inúteis para qualquer tarefa.

Mas a opinião de Nightingale era contrária à percepção de muitas em seu tempo. “Para os próprios vitorianos, a crinolina tinha pouco a ver com submissão, parecendo mais uma trama monstruosa para aumentar o tamanho das mulheres e fazer os homens parecerem insignificantes”, observou a historiadora da moda Christina Walkley.

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As saias ocupavam “mais espaço público do que uma mulher tinha direito”, disse um especialista em ilustração vitoriana Lorraine Janzen Kooistra. “A ansiedade masculina da época diante da agitação pelos direitos das mulheres foi capturada na imprensa popular na imagem visual da crinolina.”

Isso explica a fúria e birra da oposição em relação a essa vestimenta. Além de uma mobilidade melhor (em partes), ventilação e espaço, a crinolina deu às mulheres um lugar que eles poderiam ter controle, evitando avanços físicos e indesejados e lher permitindo que elas escolhessem o que revelar ou esconder.

Ela (crinolina) tinha o potencial para guardar segredos, desde amantes proibidos até gravidez e contrabando. Tudo isso sem esquecer que, para desgosto de alguns, a peça era utilizada por mulheres de todas as classes sociais, até mesmo por ex-escravas recém-libertas, que, ao usá-las, demonstravam fisicamente a luta pela igualdade social.

Em 1869, quando a tendência continuava, mas a forma e o tamanho dessas roupas começaram a mudar, surgiu um artigo intitulado “Quem matou a crinolina?”.

“Alguns dizem que a crinolina foi varrida por um grande maremoto de bom senso.”

E talvez eles estivessem certos. Mas por mais complicado e perigoso que fosse, aquela controversa roupa íntima feminina foi um prenúncio de ousadas mudanças culturais, apesar de sua aparente frivolidade.

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