De ponta cabeça, debate econômico despreza saúde e bem-estar do povão

Diante de incertezas, o ministro dos mercados, senhor Paulo Guedes, chegou a propor uma “meta fiscal flexível”, numa tentativa de contornar a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) - Foto: Divulgação

Postado em: 12-12-2020 às 06h00
Por: Sheyla Sousa
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Diante de incertezas, o ministro dos mercados, senhor Paulo Guedes, chegou a propor uma “meta fiscal flexível”, numa tentativa de contornar a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) - Foto: Divulgação

Lauro Veiga

Sexta-feira,
dia 11, encerrou-se o prazo para que parlamentares pudessem apresentar emendas
ao projeto que definirá a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), há exatos 20
dias para o final do ano. Sem a lei, que define como o governo executará o
orçamento do próximo ano, estabelecendo prioridades para o gasto público, o
governo correria o risco de entrar o próximo ano virtualmente paralisado, sem
autorização legal para dar destino aos recursos arrecadados, até porque, sem a
LDO, não seria possível ainda aprovar e sancionar a lei orçamentária, elaborada
com base em parâmetros definidos ainda em abril e agora revisados pelo governo.

Diante
de incertezas alegadas pela equipe econômica, o ministro dos mercados, senhor
Paulo Guedes, chegou a propor uma “meta fiscal flexível”, numa tentativa de
contornar a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) – ora vejam só, logo por quem
defende o ajuste imediato das contas públicas para preservar o esdrúxulo teto
de gastos. Parece tudo muito técnico, mas, na prática, ao propor um resultado
primário (receitas menos despesas, excluídos os gastos com os juros da dívida
pública) “flexível”, o ministro enganador estaria impondo ao País um orçamento
igualmente “flexível”, em que os recursos públicos (quer dizer, bancados por
cada um dos cidadãos que recolhe impostos) poderiam ser “alocados” de forma
também flexível, o que faria o orçamento perder credibilidade e transparência –
duas palavrinhas muito caras aos mercados e ao ministro, outrora super, que os
representa no governo.

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A
proposta heterogênea (vejam só, mais uma vez) obrigou o Tribunal de Contas da
União (TCU) a se mover. Claro, logo o tribunal que se ocupou em fornecer as
bases para condenar as famigeradas “pedaladas fiscais” de outros tempos não
poderia concordar com uma iniciativa que iria escancarar o terreno para, agora
sim, manobras fiscais ainda desconhecidas, mas intuídas. O ministro dos
mercados rapidamente sacou do bolso do colete uma meta fiscal para 2021,
prevendo um déficit primário em torno de R$ 232,0 bilhões para o ano que vem.
Promessas de fim de ano, com certeza. A meta significaria, caso seja mantida,
um corte de praticamente 70% no rombo em apenas um ano (algo como R$ 547,80
bilhões a menos), já que, segundo a Instituição Fiscal Independente (IFI),
organismo ligado ao Senado e responsável por assessorar o órgão na área fiscal,
o déficit primário deverá fechar 2020 muito próximo de R$ 779,80 bilhões.

Fora
do foco

O
resultado pressupõe, primeiro, que a pandemia terá seu prazo de validade
expirado em 31 de dezembro, como o Sars-CoV-2 obedecesse ao calendário fiscal e
às fabulações do senhor ministro e de sua trupe. Pressupõe, portanto, que não
será mais necessário gastar com políticas de enfrentamento da pandemia e, por
isso, a proposta orçamentária já embute o corte de um quarto dos recursos
destinados à saúde. Pressupõe que sequer será necessário reforçar gastos para
promover a vacinação de milhões de brasileiros ao longo de 2021, o que exigirá
contratar mais pessoal, investir em equipamentos e assegurar os meios e a
logística para que a vacina chegue ao maior número possível de pessoas. Da
mesma forma, a equipe econômica parece crer piamente que o crescimento
projetado será suficiente para que os mercados provejam empregos e sustentem a
renda das famílias, inclusive daqueles 30,0 milhões de brasileiros “ocultos”,
que estavam fora das estatísticas e que perderão todo o seu rendimento no
momento em que o auxílio emergencial for extinto, em 31 de dezembro próximo. E,
por falar nisso, a proposta de lei orçamentária não contempla qualquer forma de
benefício alternativo, que possa substituir o atual auxílio e assegurar alguma
renda para os mais vulneráveis.

Balanço

·  
Todo
o “esforço” e “dedicação” da equipe econômica estão voltados para preservar a
“lei do teto de gastos”. Pela legislação em vigor, aprovada no governo Temer, o
temeroso, as despesas de um ano somente poderão ser corrigidas com base na
inflação do ano anterior, o que deixará o governo de mãos amarradas para
realizar políticas compensatórias e de estímulo à atividade econômica.

·  
Mesmo
que o senhor ministro dos mercados consiga vender todas as estatais – ora,
pois, o sonho de desmonte do Estado permanece inalterado, mesmo depois de a
pandemia ter demonstrado a necessidade de mais e não de menos Estado –, as receitas
obtidas não poderiam ser gastas em setores de fato essenciais para o chamado
povão.

·  
Os
recursos seriam obrigatoriamente destinados ao pagamento da dívida pública e
não ajudariam a produzir um mísero parafuso no lado real da economia. Não
gerariam um emprego que fosse. A economia continuaria derrapando no atoleiro,
mas o governo – ah, que alívio –, passaria a dever relativamente menos.

·  
Enquanto
a curva de mortes e de infecções volta a crescer, o debate econômico
preocupa-se com a “relação dívida/PIB” (ou seja, o tamanho da dívida como
proporção do Produto Interno Bruto, o estoque de riquezas produzidas pelo País
em determinado período). Um debate enviesado, distorcido. Qualquer política
econômica deveria ter como meta o bem-estar da população, a criação de empregos
e renda, o desenvolvimento do País e de suas potencialidades. Neste momento
específico, o enfrentamento da pandemia deveria estar no centro das decisões
econômicas.

·  
Até
porque a crise sanitária continua limitando as possibilidades de retomada do
crescimento. Os dados liberados na sexta-feira pelo Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE) mostram um cenário ainda muito ruim no setor de
serviços, que respondeu por 62,7% do PIB nos primeiros três trimestres deste
ano.

·  
No
País como um todo, a atividade no setor avançou 1,7% em outubro frente a
setembro, mas desabou 7,4% em relação ao mesmo mês de 2019. Em Goiás, depois de
crescer 3,9% em setembro, os serviços recuaram 1,0% em outubro, sempre em
relação ao mês imediatamente anterior, caindo 5,7% frente a outubro de 2019.

·  
Os
serviços prestados às famílias, que incluem bares, restaurantes, hotéis,
pousadas, teatros, cinemas, cabelereiros, toda a área de eventos e festas,
acumulam perdas de 40,4% no Estado nos dez primeiros meses deste ano, na
comparação com igual intervalo de 2019. No País, tomado o mesmo período, as
perdas somam 37,7% no mesmo segmento.

Além de participar com dois terços na formação
do PIB, o setor de serviços é o que mais gera empregos, abrigando boa parcela
de trabalhadores informais (exatamente aqueles que mais necessitaram do auxílio
emergencial). Para se ter outra dimensão da crise instalada ali, os serviços
prestados às famílias teriam que crescer inimagináveis 145,0% apenas para
retomar os níveis registrados em outubro de 2013, quando havia registrado seu
melhor desempenho na série histórica do IBGE.

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