Miséria e “riqueza” financeira atingem níveis recordes no país das disparidades

Em meio a pandemia, o saldo total de aplicações financeiras aumentou 15,3% na comparação com 2019 e superou a soma de todas as riquezas geradas pelo lado real da economia | Foto: Reprodução

Postado em: 03-02-2021 às 23h58
Por: Sheyla Sousa
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Em meio a pandemia, o saldo total de aplicações financeiras aumentou 15,3% na comparação com 2019 e superou a soma de todas as riquezas geradas pelo lado real da economia | Foto: Reprodução

Lauro Veiga

O
Brasil deixará a pandemia ainda mais desigual, diante do salto recente na
“riqueza” financeira detida pelos donos do dinheiro, numa tendência não
interrompida pela mais ameaçadora pandemia em um século, e pelos níveis
recordes desde já projetados para o número de brasileiros que passarão a viver
na pobreza extrema. O comportamento desses indicadores revela muito do caráter
desse País, que despreza os deserdados e trabalha para ampliar o fosso das
disparidades nacionais, ainda que às custas do esgarçamento final de seu tecido
social.

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Em
meio à crise produzida pelo vírus Sars-CoV-2 e suas variações a cada ciclo mais
contagiosas, o saldo total de aplicações financeiras, incluindo a tradicional
poupança e o dinheiro títulos públicos e privados e em quotas de fundos de
investimento (sem considerar o investimento em ações), aumentou 15,3% na
comparação com 2019 e superou com alguma folga a soma de todas as riquezas
geradas pelo lado real da economia.

Os
rentistas de plantão deixaram estacionados nos variados instrumentos de
investimento financeiro (sempre excluindo o mercado de ações) perto de R$ 7,850
trilhões, algo como 106% do Produto Interno Bruto (PIB) estimado para 2020 pelo
Banco Central (BC).No ano anterior, o saldo daquelas aplicações havia alcançado
R$ 6,809 trilhões, correspondente a 91,92% do PIB. Entre um ano e outro, o
saldo foi reforçado com a entrada no circuito da alta grana de pelo menos R$
1,041 trilhão. Num mero exercício – pois nunca houve a mínima chance de
transferência de uma parte, ainda que ínfima, dessa dinheirama para os bolsos
dos mais pobres –, o fluxo de novos investimentos foi mais de três vezes e meia
maior do que todo o recurso gasto pelo Tesouro para fazer frente ao auxílio
emergencial entre abril e dezembro do ano passado, perto de R$ 293,105 bilhões.

A
escalada da miséria

O
fim do auxílio, como já noticiado (Folha de S.Paulo, 31.01.2021), começou a
lançar, já em janeiro, milhões de pessoas na miséria. Numa projeção da FGV
Social, com dados em duas versões da Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílio
(PNAD) realizadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE),
o total de pessoas na pobreza extrema, com rendimentos inferiores a R$ 8,20 por
dia (ou R$ 246 por mês, em torno de um quinto do salário mínimo), aproximou-se
de 27,0 milhões no primeiro mês do ano. O número corresponde a quase três vezes
o total de 9,4 milhões observados na mesma situação em agosto de 2020, o menor
contingente de miseráveis desde o começo da década passada. Em relação ao total
da população, os miseráveis passaram de apenas 4,5% em agosto de 2020 para
12,8% em janeiro deste ano, atingindo o mais alto nível em mais de uma década.

Balanço

·  
Nos
anos de crescimento da economia e da renda, o percentual de pessoas em situação
de pobreza extrema havia encolhido de 12,4% em 2011 para 9,2% em 2014. Mas
voltou a subir nos anos de recessão e crise, atingindo 11,0% ao final de 2019.

·  
A
redução do auxílio a partir de setembro já havia alterado esses números
negativamente, elevando o percentual de brasileiros na pobreza extrema para
8,5% já em novembro – uma evolução exponencial em curto espaço de tempo, já que
a decisão da equipe econômica privou milhões de famílias de uma parte de seus
rendimentos.

·  
Pode-se
avaliar os efeitos dramáticos que a suspensão definitiva do auxílio ainda trará
nos meses que virão, o que apenas reforça a necessidade urgente de construir
políticas de renda mínima para os que mais precisam e que não estão conseguindo
qualquer forma de ocupação nestes tempos de pandemia descontrolada.

·  
Enquanto
o auxílio aos miseráveis murchava, os rentistas de plantão conseguiram amealhar
porções ainda mais generosas da renda nacional, alterando a carteira de seus
investimentos na ciranda financeira para tentar compensar a queda dos juros nos
títulos federais.

·  
“Campeões”
em 2020, os títulos privados em negociação no sistema financeiro nacional
atraíram no ano passado R$ 2,323 trilhões, em torno de 29,6% do saldo dos
ativos totais. O valor cresceu 28,9% frente a 2019, quando havia alcançado
menos de R$ 1,803 trilhão (26,5% do total). Os títulos privados responderam por
metade do aumento experimentado pelas aplicações totais dos donos do dinheiro.

·  
Mas
a maior parcela, em torno de 48,8% das aplicações, foi ainda direcionada para
quotas de fundos de investimento, num total de R$ 3,932 trilhões em valores
arredondados. O avanço em relação a 2019 foi proporcionalmente menor (alta de
9,05%) do que aquele anotada pelos fundos, o que fez reduzir a fatia dessa
modalidade sobre o total, que havia sido de 51,6% em 2019.

·  
O
saldo das aplicações direcionadas a títulos federais recuou 2,76% no ano
passado, para R$ 430,746 bilhões, frente a R$ 442,970 bilhões em 2019 – muito
embora as operações compromissadas com títulos federais, amarradas ao
compromisso de recompra pelo Tesouro (daí o seu nome, evidentemente), tenham
crescido 12,7% no ano passado, saindo de R$ 135,546 bilhões para R$ 152,748
bilhões.

·  
Para
completar, o patrimônio líquido dos fundos de investimentos aumentou quase 9,8%
em 2020, segundo estatísticas da Associação Brasileira das Entidades dos
Mercados Financeiro e de Capitais (Anbima), atingindo R$ 6,005 trilhões (81,0%
do PIB). Em 2019, o patrimônio daqueles fundos havia representado 73,8% do PIB,
num total de R$ 5,469 trilhões. Em 2010, os fundos detinham R$ 1,672 trilhão,
em torno de 43,03% do PIB. Desde lá, saltaram 266,1% diante de uma variação
nominal de 90,7% para as riquezas totais produzidas pelo lado real da economia
(ou seja, o enriquecimento crescente dos donos do dinheiro não guarda a menor
relação com a economia real e é insustentável no longo prazo).

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