A manipulação de uma operação contábil e o jogo de cartas marcadas na Bolsa

Confira a coluna econômica, desta quarta-feira (03/03), por Lauro Veiga | Foto: Reprodução

Postado em: 03-03-2021 às 08h10
Por: Sheyla Sousa
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Confira a coluna econômica, desta quarta-feira (03/03), por Lauro Veiga | Foto: Reprodução

Lauro Veiga

Num
momento especialmente delicado para a Petrobrás, sua alta
direção decidiu adotar duas medidas pelo menos controversas em 2014. Espremida
de um lado pelo congelamento virtual dos preços dos combustíveis e de outro
pela baixa nos preços internacionais do petróleo e em meio ao tiroteio de
denúncias de corrupção e desvios no curso da Operação Lava Jato, a Petrobrás
decidiu recalcular o valor de seus ativos e, no mesmo movimento, aplicar um
“desconto” de 3% sobre contratos com 27 empresas, direta ou indiretamente
envolvidas nas investigações, firmados entre 2004 e 2012, com impacto de R$
6,194 bilhões sobre os resultados da empresa naquele ano.

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A
correção no valor dos ativos, chamada de “impairment” pelos especialistas,
significou um impacto de R$ 44,6 bilhões, a valores da época, representando
algo em torno de 5,5% do valor dos ativos totais da estatal então (próximos de
R$ 815,74 bilhões). Aquela revisão levou em conta o atraso em projetos
estratégicos no setor de refino e em outras áreas, por exemplo, mas também os
preços mais baixos do barril de petróleo. As duas medidas provocaram uma
“virada” de quase R$ 45,2 bilhões no resultado líquido da companhia, que saiu
de lucro de R$ 23,6 bilhões em 2013 para prejuízo de R$ 21,6 bilhões no ano
seguinte. Com impacto muitas vezes maior do que o corte linear e automático no
valor dos contratos, então classificados como “superfaturados” para atender à
fúria dos mercados, a desvalorização dos ativos acabou sendo entendida,
equivocadamente, como uma medida do “tamanho” da corrupção na petroleira.

Essa
versão, que chegou a ser repercutida mesmo pelo jornalismo dito especializado,
jamais se sustentou. Tanto que, em 2015, diante de um tombo de 47,0% nas
cotações internacionais do barril, que saiu de um valor médio próximo a US$ 99
em 2014 para US$ 52,46 na média do ano seguinte, a contabilidade da estatal
realizou outra operação de “impairment” para ajustar o valor dos ativos às
condições então observadas no setor de petróleo e gás, com impacto de R$ 47,676
bilhões (5,3% do ativo total). A medida ajudou a elevar o prejuízo para R$ 34,8
bilhões, ou seja, quase 76,0% mais do que em 2014.

De novo. E sem
Lava Jato

Muito
bem. No primeiro trimestre do ano passado, quando o mercado de petróleo
literalmente virou de ponta cabeça (para relembrar, a cotação do barril no
mercado futuro chegou a ficar negativa no comecinho do ano), a Petrobrás
realizou novo “impairment”, desta vez, muito mais relevante, somando R$ 65,3
bilhões correspondendo a 6,7% do ativo total. Resultado da “roubalheira” na
companhia? Nem antes, nem agora. As operações de correção dos valores dos bens
alocados no ativo da companhia foram utilizadas de forma inescrupulosa, numa
manipulação que terminou com a petroleira sendo obrigada a desembolsar, em
2017, em torno de US$ 3,449 bilhões (perto de R$ 11,198 bilhões a valores de
então) para encerrar ação coletiva (classaction) movida na Justiça dos Estados
Unidos por fundos abutres que alegavam pretensos prejuízos causados pela
corrupção denunciada na companhia brasileira. A valores de hoje, a despesa
corresponde a praticamente R$ 19,6 bilhões.

Balanço

O
valor provisionado pela estatal (quer dizer, “reservado” em seu caixa) para
colocar um ponto final na ação foi central para explicar o prejuízo de R$ 446,0
milhões realizado pela Petrobrás em 2017. Sem esse fator, estima a empresa,
teria ocorrido um lucro de R$ 7,089 bilhões no mesmo exercício.

O
impacto só não foi maior diante das dimensões da empresa, um dado negligenciado
pelo noticiário, que colocava todo o destaque sobre os valores bilionários que
a Petrobrás, sob ataque, foi obrigada a desembolsar num processo em que foi a
principal vítima. Para comparar, aqueles quase R$ 11,2 bilhões representavam
3,95% das receitas realizadas pela petroleira com a venda de seus produtos aqui
dentro e lá fora. Comparadas ao ativo de R$ 831,515 bilhões registrado naquele
mesmo ano, a relação murcha para 1,35%.

Acreditar
que esses valores poderiam “quebrar” a empresa, como se mencionou na época,
nitidamente não correspondia e nem corresponde atualmente à realidade da
companhia, uma falsidade mesmo, entre muitas assacadas contra a estatal.

Na
verdade, o “impairment” é uma operação destinada a recalibrar o valor dos
ativos segundo as condições presentes no mercado no momento, que determinam
igualmente mudanças nas projeções futuras para receitas, fluxo de caixa e
resultados, mas com efeitos meramente contábeis. Quer dizer, aquelas operações
não afetaram a capacidade operacional da petroleira, que tem sido sim demolida
pela política de liquidação dos setores de distribuição, refino e mesmo de
campos de petróleo que a direção da empresa considera pouco lucrativos. O
objetivo? Reforçar os lucros no curtíssimo prazo (e os bônus respectivos pagos
aos executivos da companhia) à custa do futuro da maior empresa do País.

As
suspeitas de negociatas com ações da Petrobrás, que chegaram a despencar 26,7%
entre quinta, dia 18, e segunda-feira, dia 22 de fevereiro, durante o episódio
de troca de comando na empresa por decisão do mais alto escalão do Palácio da
Alvorada, foram reforçadas ontem com a publicação de detalhada reportagem da
colunista Malu Gaspar, em seu blog em O Globo.

Duas
operações atípicas de compra de contratos de opção, que venceriam na segunda,
foram registradas naquela quinta-feira, envolvendo 4,0 milhões de títulos. A
liquidação dos contratos, vistos como verdadeiro mico pelo mercado até ali,
provocou perdas milionárias e ganhos que podem ter alcançado R$ 18,0 milhões,
praticamente da noite para o dia. Como os papéis foram comprados a R$ 0,04 cada
um, somando R$ 160,0 mil no total, a rentabilidade do negócio aproximou-se de
assombrosos 11.125%.

Tudo
somado, alguém soube antes das mudanças na alta cúpula da Petrobrás, recebeu a
informação privilegiada de dentro do palácio e a usou para lucrar no mercado de
opções, num crime punível com um a cinco anos de prisão e multa de até três vezes
sobre o valor do ganho registrado.

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