Feminismo, HIV, ditadura: entenda o que estava por trás das questões vetadas do Enem 2019

A revista Piauí teve acesso a documentos que indicam o que desagradou o governo; censores alegaram ‘polêmica desnecessária’, 'descontextualização histórica' e 'leitura direcionada' nos itens censurados

Postado em: 19-11-2021 às 11h35
Por: Giovana Andrade
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A revista Piauí teve acesso a documentos que indicam o que desagradou o governo; censores alegaram ‘polêmica desnecessária’, 'descontextualização histórica' e 'leitura direcionada' nos itens censurados. | Foto: Reprodução

Em 2019, uma comissão montada pelo governo Jair Bolsonaro para avaliar as questões presentes no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) daquele ano pediu a exclusão de 66 perguntas, sem consultar a equipe técnica do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep).

A comissão foi criada pelo então presidente do Inep, Marcus Vinícius Rodrigues, atendendo um pedido do presidente Jair Bolsonaro. O grupo, composto por um procurador de Justiça, um diretor do Inep e um ex-aluno de Ricardo Vélez Rodríguez, então ministro da Educação, se reuniu ao longo de dez dias em março de 2019 e usou carimbos de “sim” e “não” para aprovar ou rejeitar questões.

O fato foi revelado em fevereiro deste ano, mas na época o parecer não apresentava o conteúdo das questões, apenas os resultados das análises. Agora, a revista Piauí teve acesso às justificativas dessas intervenções e mostrou diversos itens analisados e reprovados pela comissão. A maior parte das perguntas, segundo a revista, foi censurada por provocar “polêmica desnecessária”. As informações constam em documento no qual integrantes do Inep pediam a reinclusão de parte das questões censuradas.

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Ao final da revisão, 66 questões foram excluídas da prova, sem consultar a equipe técnica do Inep, que já havia aprovado todos aqueles itens. Em uma planilha de Excel, os censores apresentaram justificativas sucintas e mal explicadas para suas escolhas, sem deixar claro o que seria a “polêmica desnecessária” alegada, por exemplo.

Foram censuradas principalmente questões que envolviam o contexto político e social dos últimos anos do Brasil. Itens relacionados ao feminismo, como uma questão sobre a Marcha das Vadias, entre outros movimentos sociais, gravidez na adolescência, HIV, religião, perguntas que tratavam desde a abolição da escravatura e as condições precárias a que pessoas negras estão submetidas no Brasil, temas como maioridade penal, violência policial, armas de fogo, até agricultura e alimentos transgênicos, foram censurados.

Três questões que falavam de “conflitos sociais” foram barradas com a alegação de que faziam “leitura direcionada da história” – justificativa usada para censurar 19 itens. Também houve cuidado com os assuntos de política externa, com a exclusão de uma questão que falava sobre as relações entre o governo Donald Trump e Israel. Ainda de acordo com a revista, diversos poemas e tirinhas, incluindo algumas da Mafalda, também não puderam entrar na prova por “serem polêmicas”. 

Ditadura

Questões sobre o período ditatorial militar brasileiro também desagradaram a comissão, que excluiu seis perguntas relacionadas ao tema.

Uma das questões censuradas citava o poema “Maio 1964”, escrito por Ferreira Gullar, que fala sobre a violência e as prisões políticas ocorridas nas semanas seguintes ao golpe. “Mas quantos amigos presos! / quantos em cárceres escuros / onde a tarde fede a urina e terror”, diz uma das estrofes. No gabarito desse item constava apenas que a poesia tratava do “contexto em que o Brasil se encontrava após o golpe militar”. A comissão de censura do Inep, ainda assim, decidiu excluir a questão do exame, com a justificativa de que havia “Descontextualização histórica do texto”.

A suposta “descontextualização histórica” também foi usada pelos censores para excluir uma pergunta que se baseava em um poema de Paulo Leminski e tratava da ditadura. Uma outra questão, que citava uma letra de música escrita por Chico Buarque (não se sabe qual), foi censurada com a seguinte explicação: “Leitura direcionada da história / Sugere-se substituir ditadura por regime militar”. Os servidores pediram que a exclusão fosse revista.

Em alguns casos, provavelmente sabendo que não poderiam comprar todas as brigas, os servidores responsáveis pelo Enem aceitaram os argumentos dos censores. Consentiram, por exemplo, com a exclusão de uma questão sobre a prática de tortura pelos militares, sobre a qual comentaram: “Um instrumento que apresente itens que se refiram apenas a um lado da história se mostraria inadequado e polêmico”.

Os servidores concordaram com a exclusão de 28 itens, mas pediram que 38 das 66 questões fossem reabilitadas ou reconsideradas. Como as perguntas não foram deletadas do Banco Nacional de Itens – apenas não foram utilizadas na prova daquele ano -, nenhuma das questões foi divulgada. Elas precisam permanecer em sigilo porque, no futuro, poderão aparecer no Enem.

A censura registrada no Enem 2019, especialmente nas provas de ciências humanas, condiz perfeitamente com o pensamento de Bolsonaro e até mesmo com suas promessas de campanha, mas chama atenção a exclusão de uma questão de ciências da natureza, que versava sobre o canibalismo entre animais. “Induz o jovem a comportamento antissocial”, justificou a comissão de censura do Inep. Aparentemente, os censores estavam mesmo preocupados com a juventude.

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