“Querem me prender, me prendam, eu estou cansado”, diz dono da Kiss durante depoimento

Em momento de desespero e choro, Elissandro Spohr afirmou, aos prantos, que perdeu amigos, funcionários e que jamais desejou causar mal

Postado em: 09-12-2021 às 09h26
Por: Giovana Andrade
Imagem Ilustrando a Notícia: “Querem me prender, me prendam, eu estou cansado”, diz dono da Kiss durante depoimento
Em momento de desespero e choro, Elissandro Spohr afirmou, aos prantos, que perdeu amigos, funcionários e que jamais desejou causar mal. | Foto: Reprodução

O primeiro réu a depor no tribunal do júri do Caso Kiss foi um dos sócios-proprietários da boate, Elissandro Spohr. Narrando os fatos que sucederam após a tragédia, Spohr entrou em desespero e declarou estar farto. “Querem me prender, me prendam, eu estou cansado, cara. Eu sei que perderam gente e tal, mas perdi um monte de amigos, eu perdi funcionários. Acham que eu não tinha amigos lá? Acham que eu ia fazer uma coisa dessas?”, disse aos pratos em seu interrogatório, nesta quarta-feira (08/12).

Ele afirmou que perdeu amigos, funcionários e que recebeu mensagens de pessoas dizendo que ele deveria “se matar”. Nesses momentos, deixou de falar ao microfone do júri e se virou em direção às famílias das vítimas que acompanham no plenário. Disse que nunca desejou a tragédia e que a Kiss era uma boa casa de festas. Enquanto Spohr se justificava, aos prantos e gesticulando nervosamente, parentes de falecidos na tragédia deram as mãos e se abraçaram, em corrente.

“Não é fingimento! Eu não aguento mais, cara. Eu estava tremendo, eu estava sem ar. Eu tive que pegar ar para dar esse depoimento”, disse ele, ainda chorando. Devido ao quadro emocional do réu, o juiz Orlando Faccini Neto parou a sessão para um intervalo de quarenta minutos.

Continua após a publicidade

Spohr era o sócio que tocava o dia a dia da casa noturna onde um incêndio matou 242 pessoas e feriu outras 636 no dia 27 de janeiro de 2013, em Santa Maria. Ele, o sócio Mauro Hoffmann e os integrantes da banda Gurizada Fandangueira, Marcelo de Jesus dos Santos (vocalista) e Luciano Bonilha Leão (assistente de palco), são acusados por homicídio e tentativa de homicídio simples por dolo eventual pelas mortes ocorridas na tragédia.

O réu contou que estava do lado de fora da boate, resolvendo um problema com uma pessoa, quando foi informado de que havia uma situação no palco por um funcionário. Segundo o ex-dono da Kiss, depois de se dar conta que havia um incêndio, ele começou a tentar ajudar no estabelecimento e a tirar pessoas do local, levando para o estacionamento do supermercado Carrefour, em frente ao estabelecimento.

Ele afirma que, quando viu uma ex-funcionária chamada Vanessa se aproximar, estava de braços abertos e pensou que receberia um abraço dela, mas foi surpreendido por um tapa. A jovem perguntava a ele pela irmã, que trabalhava no local e morreu na tragédia. Depois disso, segundo ele, disseram que seria melhor que ele saísse do local porque poderia ser agredido.

Spohr disse ter ido então para uma delegacia, para que constasse que se apresentou, que estava morrendo gente na sua boate e que ele não sabia o que fazer. Quando ouviu que os mortos estavam em torno de 30 pessoas, ele vomitou. Mas, enquanto acompanhava na rádio, a conta ia aumentando.

“Eu não consegui pedir desculpa. Eu ia procurar quem? Como eu ia falar com alguém? A Vanessa que trabalhou comigo, que me conhecia, foi me dar um tapa. Pessoas que eram meus amigos me mandaram mensagem mandando eu me matar. Eu ia me matar, não tem, não tinha como ficar nessa situação”, falou ainda chorando.

“Isso não devia ter acontecido, eu sei que não devia ter acontecido. Por que isso foi acontecer na Kiss, cara? Era uma boate boa, era uma boate que todo mundo gostava de trabalhar”.

Barulho e espuma

No início do interrogatório, Spohr descreveu o princípio dos problemas na Kiss, causados por ruídos que atrapalhavam vizinhos.

“Era uma vizinha o problema. Eu tentei de tudo pra resolver. (…) Fizemos a obra, trocamos o palco de lugar, e seguia o barulho. A gente fez parede de pedra, forro duplo de gesso com lã de rocha e lã de vidro. Continuou. Vibrava o quarto da vizinha. Foi feito uma parede, ou duas, ou três, de gesso no apartamento da vizinha. Pintei apartamento dela para fazer agrado e troquei janelas, com vidro duplo” relatou Spohr, abordando a poluição sonora que causava incômodo aos vizinhos e que levou o Ministério Público a chamar a Kiss à assinatura de um termo de ajustamento de conduta (TAC) para conter o ruído. 

As obras de alvenaria para fazer o isolamento acústico não funcionaram plenamente, disse Spohr, e o engenheiro Miguel Pedroso, que projetou as intervenções, manteve a postura de não recomendar a instalação de espuma. Spohr disse que havia uma “divergência” entre Pedroso, que não indicava espuma, e o engenheiro Samir Samara, que supostamente teria recomendado esse composto para um “tratamento acústico”. Samara nega ter feito essa indicação. 

Spohr seguiu seu relato contando que recebeu a sugestão de que ele próprio providenciasse a colocação de espuma no palco da Kiss, porque Samara estava muito ocupado. Inicialmente, usou retalhos velhos que, no passado, haviam sido arrancados por orientação de Pedroso. O réu disse não ter gostado do resultado estético e explicou ter comprado novo composto, que foi instalado por seus funcionários.  

Show pirotécnico

Foi essa espuma que, no dia da tragédia, acabou incendiando ao ser alcançada por fagulhas de um artefato pirotécnico erguido pelo vocalista Marcelo de Jesus dos Santos, da banda Gurizada Fandangueira. Segundo Spohr, ele não deu autorização para o uso do artefato pirotécnico no show da madrugada de 27 de janeiro de 2013. O juiz perguntou se alguma outra banda já havia pedido para usar algo do tipo na boate.

“Até o acontecido, eu não lembro”, afirmou ele. “Acho que eu não deixaria, por causa das cortinas, alguma coisa assim. Eu não sei. Não. Eu não deixaria”, respondeu por fim.

O juiz perguntou ainda se ele avisou ao grupo que a reforma diminuiu a distância entre teto e palco e que havia espuma. “Não tive essa conversa com eles e acredito que eles, realmente, achavam que esse treco não pegava fogo”, relatou.

Em depoimento na última segunda (06), Márcio de Jesus dos Santos, músico da banda, afirmou que o grupo não foi informado sobre restrições na casa. Segundo Spohr, a banda se apresentou outras vezes na Kiss, mas sua relação era mais próxima com Danilo Jaques, o responsável por fechar os trabalhos. Danilo era o gaiteiro do grupo e morreu na tragédia.

Além de Elissandro Spohr, outras quatro pessoas foram ouvidas nesta quarta (08), incluindo o promotor do Ministério Público Ricardo Lozza, responsável pelo Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) para resolver o problema da poluição sonora na boate, e o ex-prefeito Cezar Schirmer (MDB). Com a abertura dos depoimentos por Spohr, o histórico júri da Kiss, o maior já realizado no Rio Grande do Sul, entra na reta final e se aproxima da sentença, estimada para sair na madrugada de sábado (11). 

Veja Também