Quinta-feira, 28 de março de 2024

Guia em cinco perguntas para entender a crise no Afeganistão

Com retirada de tropas dos Estados Unidos, situação do país se agrava e chama a atenção do mundo

Postado em: 30-08-2021 às 08h09
Por: Marcelo Mariano
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Com retirada de tropas dos Estados Unidos, situação do país se agrava e chama a atenção do mundo | Foto: Reprodução

As imagens de homens, mulheres e crianças se agarrando a aviões para tentar fugir do Afeganistão chocaram o mundo. Se as pessoas se submetem a isso, é porque, para elas, ficar no país pode ser pior.

Com a decisão dos Estados Unidos de retirarem suas tropas do Afeganistão, o grupo extremista Talibã ganhou força e rapidamente tomou o controle da Cabul, a capital afegã.

A situação, além de triste, é complexa. Por isso, o jornal O Hoje preparou um guia em cinco perguntas para entender a crise no Afeganistão.

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Por que os EUA invadiram o Afeganistão? A invasão americana começou logo depois dos ataques terroristas de 11 de setembro de 2001, que completam vinte anos na semana que vem.

Responsável pelos atentados, a Al Qaeda era protegida pelo Talibã, que, à época, estava no poder no Afeganistão. Junto com a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), os Estados Unidos, então, decidiram invadir o país como resposta à ação do grupo terrorista.

Em pouco tempo, os EUA derrubaram o regime do Talibã, mas o líder da Al Qaeda, Osama bin Laden, só foi encontrado dez anos depois, no vizinho Paquistão.

Por que os EUA se retiraram do Afeganistão? Após duas décadas, o Afeganistão se tornou o conflito armado mais longo da história americana, além de representar enormes custos tanto financeiros quanto humanitários.

Fato é que, ao longo deste período exaustivo, criou-se um sentimento nos Estados Unidos, compartilhado por opinião pública, imprensa e políticos democratas e republicanos, de que era preciso se retirar do Afeganistão.

Em 2020, o então presidente americano, Donald Trump, fez um acordo com o Talibã, mediado pelo Catar, prevendo a retirada de todas as tropas dos EUA e da Otan de forma que não aumentasse a violência no país.

Durante a campanha presidencial, Trump disse que queria completar a retirada até o Natal do ano passado. No entanto, diante da dificuldade de uma operação como essa, o prazo foi estendido.

Joe Biden assumiu no final de janeiro e iniciou a retirada em maio. Apesar do prazo estendido, ele a executou sem o planejamento adequado – por exemplo, não traçou um plano eficiente para evacuação de cidadãos de países ocidentais e afegãos que colaboraram com a invasão – e baseado em estimativas equivocadas do serviço de inteligência – não previram que o Talibã avançasse tão rápido. Assim, gerou-se o caos atual.

Além disso, embora Biden negue, havia uma expectativa de que os Estados Unidos ajudassem o Afeganistão a fortalecer suas instituições, como as Forças Armadas. Porém, nem isso foi possível. Não há dúvidas de que a invasão americana tenha sido um fracasso.

O que é o Talibã? O Talibã é um grupo fundamentalista religioso que segue uma versão extremista do islã sunita. Fundado em 1994, chegou ao poder em 1996 e só saiu em 2001, com a invasão americana. Em pashto, uma das principais línguas do Afeganistão, a palavra Talibã quer dizer “estudantes”.

Seu governo foi marcado por uma interpretação radical do islã, especialmente dura com as mulheres, que tinham de cobrir todo o corpo e não podiam estudar.

Para entender a formação do Talibã, é preciso voltar a 1979, ano em que a União Soviética invadiu o Afeganistão. Atualmente países independentes, Turcomenistão, Uzbequistão e Tajiquistão faziam parte da União Soviética, que, portanto, tinha fronteira com o Afeganistão.

O objetivo dos soviéticos era restabelecer um governo aliado no país. O Afeganistão também era visto estrategicamente pela União Soviética como uma opção que poderia facilitar o acesso às águas quentes do Oceano Índico, transformando-a, dessa forma, em uma potência marítima.

A União Soviética tinha – e a Rússia de hoje ainda tem – uma enorme costa, mas em regiões que, devido às baixas temperaturas, são navegáveis somente durante poucos meses do ano, limitando a capacidade do país do ponto de vista marítimo.

Em um contexto de Guerra Fria, os Estados Unidos apoiaram grupos contrários aos soviéticos. O problema é que esses grupos, os chamados mujahidins – ou guerreiros santos –, eram extremistas religiosos.

Os mujahidins, em resumo, eram contra a presença de exércitos estrangeiros em território islâmico. O mais conhecido deles certamente foi Osama bin Laden. Dos mujahidins, nasceram tanto a Al Qaeda quanto o Talibã.

A Al Qaeda se rebelou contra os Estados Unidos a partir da Guerra do Golfo, no início dos anos 1990. Os EUA usaram a Arábia Saudita como base, e Bin Laden, que era saudita, não gostou de mais uma presença de exército estrangeiro em território islâmico, ainda mais depois de ele ter oferecido tropas da Al Qaeda para a Arábia Saudita, que rejeitou e preferiu as americanas.

Em 1993, a Al Qaeda realizou um atentado contra o World Trade Center. Algumas pessoas morreram, mas o objetivo de derrubar as torres gêmeas não foi concluído.

Cinco anos depois, o grupo terrorista atacou as embaixadas dos Estados Unidos no Quênia e na Tanzânia. Em 2000, o alvo foi um navio de guerra da marinha dos EUA na costa do Iêmen. E, então, vieram os ataques de 11 de setembro de 2001, que resultaram na invasão americana do Afeganistão.

O que esperar daqui para frente? Com a saída das potências ocidentais e a fuga do governo afegão, o Talibã, sem dúvidas, se consolidará como a força dominante no país, embora haja outros grupos rivais, como o braço do Estado Islâmico na região, que realizou um ataque de grandes proporções nos arredores do aeroporto de Cabul na semana passada e com certeza será uma pedra no sapato, mas sem condições reais de ameaçar o poder do Talibã pelo menos a curto prazo.

O Talibã, no entanto, não terá vida fácil. Uma coisa é se organizar como grupo insurgente. Outra coisa bastante diferente é governar um país, principalmente quando as reservas financeiras estão congeladas no exterior.

A principal fonte de renda do Talibã é por meio do controle das plantações de papoula, de onde se extrai o ópio, usado para produzir heroína. Estima-se que o Afeganistão seja responsável por 85% de toda a produção de ópio do mundo. Entretanto, o tráfico de drogas não é suficiente para cobrir os custos que se tem com o governo de um país.

Por isso, há quem acredite que o Talibã possa se moderar para obter reconhecimento internacional, o que deixaria o Afeganistão menos isolado e com mais condições de ter acesso a outras receitas.

De fato, uma adaptação ou outra de discurso já tem sido feita. Contudo, nota-se mais ceticismo do que otimismo quanto ao respeito aos direitos das mulheres, por exemplo.

A tendência é que o vácuo deixado pelos Estados Unidos e seus aliados seja ocupado por Rússia e principalmente China. Pragmáticos, ambos os países temem instabilidade em uma região na qual exercem influência.

No caso da China, existe uma preocupação específica em evitar qualquer tipo de reflexo do Talibã em Xinjiang, província no noroeste do país onde habitam muçulmanos da etnia uigur. Há relatos de que o governo chinês, sob a justificativa de prevenir radicalizações, os coloca em campos de concentração. Uma parte considerável dos muçulmanos uigures de Xinjiang busca independência.

Ainda sobre a China, o Afeganistão é logisticamente importante para a Nova Rota da Seda, o projeto chinês de investimento em infraestrutura em praticamente todos os cantos do mundo. 

Não é à toa que, antes mesmo de o Talibã controlar Cabul, o ministro das Relações Exteriores da China, Wang Yi, antecipando-se ao cenário pós-EUA, teve uma reunião com representantes do grupo extremista a fim de garantir os interesses chineses no Afeganistão.

Enquanto isso, os EUA precisarão lutar para recuperar sua credibilidade, altamente abalada com as imagens desesperadoras que rodaram o mundo.

Aliás, é possível que haja uma nova crise dos refugiados, inicialmente nos países da região, como Paquistão e Irã.

Em seguida, os refugiados afegãos devem chegar à Turquia, que, como porta de entrada para o continente europeu, tende a barganhar concessões junto à União Europeia.

Uma vez na Europa, os refugiados podem, mais uma vez, se tornar tema de debates políticos, como na Alemanha, que terá eleições no final de setembro para substituir Angela Merkel, e na França, onde Emmanuel Macron tentará a reeleição em 2022.

O Brasil pode fazer algo? O Brasil está distante geograficamente do Afeganistão e também não tem grandes relações econômicas e políticas com o país – não há nem sequer representação diplomática brasileira em Cabul, e as demandas devem ser encaminhadas para a Embaixada do Brasil em Islamabade, no Paquistão.

Logo, é natural que o governo brasileiro não tenha muito envolvimento. O Ministério das Relações Exteriores apenas emitiu uma nota protocolar, pedindo respeito aos direitos humanos e defendendo uma maior atuação da Organização das Nações Unidas (ONU).

No momento, o Brasil se concentra em retirar do Afeganistão brasileiros e seus familiares que entraram em contato com o Itamaraty e estuda a possibilidade de flexibilizar a política de vistos humanitários para receber refugiados afegãos.

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