Na contramão da Câmara, sociedade enxerga tramitação truculenta do Plano Diretor

Apesar do Legislativo enxergar com “tranquilidade” decisão judicial que garantiu ampliação dos debates, sociedade vê com ‘desespero’ análise do texto a toque de caixa

Postado em: 07-01-2022 às 08h21
Por: Felipe Cardoso
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Apesar do Legislativo enxergar com “tranquilidade” decisão judicial que garantiu ampliação dos debates, sociedade vê com ‘desespero’ análise do texto a toque de caixa | Foto: Reprodução

Apesar da Câmara Municipal encarar com “tranquilidade” o despacho do Poder Judiciário que garantiu a ampliação dos debates em relação a tramitação da revisão do Plano Diretor de Goiânia, a sociedade tem encarado com ‘desespero’ a condução precipitada da matéria do Legislativo. 

Em nota disparada à imprensa local ainda na última quinta-feira (6/1) a Câmara justificou sua posição com base em alguns pontos. Dentre eles a não conclusão da apreciação da matéria que segue, segundo o Parlamento, “aberta à propostas da comunidade”. Outro ponto diz respeito à transparência, haja vista a disponibilização do conteúdo para consulta popular através do portal da Câmara. 

Em outro trecho, o Legislativo argumentou que “vem realizando ampla divulgação das sucessivas etapas de tramitação e apreciação do Plano Diretor, promovendo a participação popular – presencial e remota – nas reuniões, audiências públicas e sessões relacionadas à matéria”. Apesar da posição, a sociedade civil tem enxergado a movimentação da matéria com outros olhos. 

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Durante a última audiência pública realizada pela Comissão Mista na última terça-feira (4/1), uma das primeiras a usar a tribuna para falar sobre o assunto foi Dulce Helena, que representou as cooperativas de catadores de materiais recicláveis. Ela pediu que fosse descrito, de forma clara na revisão do Plano, as normativas garantidas ao Polo de Desenvolvimento Social do município. 

“Hoje as pessoas não dão a devida importância, mas os resíduos são sinônimos de saúde, economia, dignidade e geração de emprego e renda. Vocês precisam entender a importância desse universo para a economia”, disparou da tribuna. 

Já o presidente da Associação Pró Setor Sul (Aprosul), Edmilson Moura, criticou a condução “truculenta” da Câmara em relação ao projeto.  “Quero juntar minha voz à voz de muitos que já subiram nesta tribuna para denunciar a postura anti povo que tem marcado a tramitação do Plano Diretor dessa cidade”. E continuou: “Lamento profundamente a postura do prefeito Rogério Cruz (Republicanos). O que temos visto, como a imprensa já mostrou, são diversas reuniões com o segmento empresarial ao invés de ouvir a sociedade civil”.

Moura ainda acrescentou que a sociedade termina “brutalmente impactada” com a aprovação acelerada da matéria. “É importantíssimo que os senhores tenham compromisso com as pessoas menos favorecidas. Por acaso estamos discutindo a mesma Goiânia de 2017? A pandemia não afetou essa cidade? Temos hoje a mesma situação de quando o plano diretor foi redigido lá atrás ou precisamos estudar o brutal impacto que a pandemia causou?”, questionou. 

Antes de deixar a tribuna, Edmilson ainda considerou as audiências públicas realizadas desde a chegada do texto na Casa de Leis como um “processo teatral” e assegurou que tudo será judicializado também pela Aprosul. “Não podemos abrir mão do cumprimento do Estatuto da Cidade e vamos fazer questão, até o último minuto, que a população seja verdadeiramente ouvida e que sua vontade esteja no texto final”. 

Em nome da ocupação

Vários participantes da audiência pública da última terça pediram a palavra para sair em defesa da população que reside nas regiões ocupadas de Goiânia. Maria Regina, que falou em nome do Solar Ville, lembrou que são milhares de crianças e idosos que merecem atenção do Poder Público. “Estamos aqui para pedir que incluam essas pessoas no Plano. Respeitamos os senhores vereadores, assim como os empresários, mas também fazemos parte da cidade e precisamos de reconhecimento. Nós pagamos nossos impostos, votamos e, sobretudo, existimos”. 

“Falar é bonito, mas não vemos ninguém fazendo algo por essa parte da população. Ninguém se dispõe a ajudar. Não somos uma massa que pode ser moldada ao bel-prazer de quem quer que seja. Queremos que coloquem os nossos direitos em pauta. Procurem conhecer nossa realidade. Precisamos de emprego, escolas, saúde, mas na verdade seguimos ali esquecidos e somos lembrados apenas em época de campanha”. 

Ainda em nome das ocupações, Ana Carla também foi convidada a usar a tribuna. “Não estamos ali porque gostamos ou queremos morar em casas improvisadas. Estamos ali porque precisamos de moradia, necessitamos de um lugar que seja nosso. Com a chegada da pandemia ficamos desassistidos e queremos o nosso direito de morar e criar nossos filhos com educação e dignidade. Não vamos calar nossa voz porque existimos e precisamos”, disparou.

Terceiro setor 

Representantes do terceiro setor também marcaram presença no último encontro. Em nome do segmento, o assistente social e presidente do Fórum Goiano do Terceiro Setor, Arízio Ribeiro, reivindicou que o projeto contenha normativas relacionadas à regularização das áreas desafetadas. “É um pedido justo porque precisamos ter acesso a construções e reformas que atualmente são prejudicadas por não estarem em nome das instituições. Isso nos impede de termos acesso a recursos públicos e até privados. Peço aos senhores que analisem com cuidado essa nossa demanda”. 

Rebaixamento 

Preocupado com o impacto ambiental, Antônio de Pádua lembrou que o Conselho Regional de Engenharia e Agronomia de Goiás (CREA) sempre foi contra o rebaixamento do lençol freático “para não acontecer o mesmo que já aconteceu na região do Parque Flamboyant, por exemplo”. 

Ele explicou que devido ao procedimento, foi necessário o bombeamento da água do lençol e isso fez com que a vegetação do parque terminasse afetada. Ele também citou como exemplo a execução do viaduto da Araguaia. 

“Sempre fomos contra, mas atualmente já contamos com tecnologia que permite o rebaixamento permanente sem afetar a região do entorno, utilizando laje sob pressão, paredes de diafragma, enfim, o que queremos é pedir que se rejeite a emenda proposta impedido o rebaixamento permanente. Esse ofício já foi, inclusive, encaminhado. O rebaixamento em segurança já é possível e, por isso, entendemos que ele não deve ser proibido. 

Impacto no trânsito 

Por sua vez, o ex-vereador por Goiânia, Geovane Antônio, disse que ainda durante sua passagem pela Câmara os vereadores já lutavam contra alguns “gargalos”. “Dentre eles, a exigência do estudo de impacto de trânsito e vizinhança para os macro empreendimentos residenciais”, citou. 

Outra luta, segundo ele, diz respeito às áreas de desaceleração de crescimento da cidade. 

“Gostaria de saber se tem alguma previsão de não permitir o uso da outorga onerosa nessas áreas definidas na lei do Plano Diretor como área de desaceleração do crescimento”.

Depois foi a vez do também ex-vereador Djalma Araújo considerar os encontros promovidos pela Câmara um grande “espetáculo”. “Estamos dando um cheque em branco para o segmento imobiliário, tudo isso para atender seus interesses. Fiquei aqui por 24 anos e nunca vi tanta coisa nefasta como a revisão desse Plano que busca atender apenas um setor”. 

Araújo também lembrou da recente decisão judicial provocada por iniciativa do vereador Mauro Rubem (PT) que culminou no adiamento das discussões. “Se dependesse unicamente deles [representantes] o trator já teria passado. O próprio Poder Judiciário já reconheceu que é preciso obedecer o Estatuto das Cidades que garante a realização de quantas audiências forem necessárias para debater o Plano. Estou vendo aqui um jogo de cena. Reuniram alguns vereadores e alguns empresários para decidir o destino de 1,5 milhão de goianienses”. 

Patrimônio Cultural

Em nome do segmento, a arquiteta e urbanista Bia Otto de Santana lembrou ter sido uma das personalidades a participar da equipe que fez o diagnóstico de discutiu as mudanças trazidas ao patrimônio cultural. “Infelizmetne o que foi pontuado no diagnóstico não foi tão bem refletido na leitura final do projeto e algumas emendas apresentadas podem afetar isso de maneira muito séria”, garantiu.

Ela chamou atenção, por exemplo, para as alterações que afetam a Área de Proteção Cultural da cidade. “Foi feito um juízo de valor dizendo que essa área poderia impactar negativamente a requalificação do Centro de Goiânia devido sua limitação nas áreas do entorno do bem tombado. É necessário um estudo aprofundado dessa questão. Essa bola é levantada no relatório, mas os técnicos do patrimônio que foram ouvidos na fase de diagnóstico não foram ouvidos pelas pessoas que fizeram esse juízo de valor”, criticou.

Segundo ela, as alterações não ficaram claras seja nos mapas ou na própria descrição do Plano. “Queremos saber quais foram as alterações e se elas se relacionam a definição de polígono ou aos parâmetros urbanos estabelecidos para ocupação dessas áreas. Nos colocamos, inclusive, a disposição para explicar melhor que essas limitações não impactam  negativamente, pelo contrário, elas existem para proteger o bem tombado, o que é fundamental”, finalizou.

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