Perigos vão de travessia à integração
Desafio de integrar refugiados passa por processo de mudança que envolve os próprios alemães
Na Síria tomada pela guerra, homens jovens, em geral, só têm duas opções: pegar em armas (pelo governo ou com os rebeldes) ou se recusar a lutar e ser preso. No dia 19 de setembro de 2014, autoridades do Exército bateram à porta de Alaa Houd, então com 27 anos, para recrutá-lo. Mas ele não estava mais lá. Na madrugada, havia se despedido da esposa e do filho de apenas 2 anos para arriscar a vida de outra forma: encarar uma longa jornada até a Europa para buscar melhores condições para a família.
“Eu pedi desculpas ao meu filho. Disse ‘sinto muito por deixar você aqui e, desta vez, eu não sei se vou te ver de novo. Mas eu estou fazendo isso por você. Espero que você me perdoe se algo acontecer’”, relembra Houd, no único momento da entrevista em que os seus olhos se enchem de lágrimas. Essa é a lembrança mais vívida e mais doída da difícil travessia que o trouxe à Alemanha.
Para bancar a viagem, eles venderam a casa em que viviam e Hiba foi morar com o filho na casa dos pais.
À deriva
De Damasco, capital da Síria, Houd foi de carro para o Líbano, onde pegou um voo para a Turquia, com destino à cidade de Esmirna, na costa. “Lá há smugglers em todos os lugares, em cafés, em cada esquina”, conta o refugiado, se referindo aos traficantes de pessoas que viabilizam as travessias ilegais pelo Mar Mediterrâneo. Foi com o dinheiro da venda de uma casa em Damasco que Houd pode pagar o que eles pediam: 1200 euros para ir de bote inflável até a ilha de Kos, na Grécia.
“Estava abarrotado, a maioria sírios, como eu”, conta. Eles mesmos conduziram a embarcação improvisada. “O smuggler disse que era fácil, que era só seguir em direção a uma pequena luz no horizonte”. Mas não foi.
Cerca de uma hora depois, eles avistaram a Guarda Costeira e alguns refugiados furaram o barco. “Quando ela pega, leva todo mundo de volta para o país de partida. Algumas pessoas que estavam no barco já haviam passado por isso e tiveram medo de serem mandadas para a Turquia de novo”, explica Houd. Eles nadaram por três horas até serem resgatados pela Guarda Costeira da Grécia.
Depois de seis dias com a mesma roupa na ilha de Kos, ele conseguiu ser registrado como refugiado. Pelas leis europeias, o registro deve ser feito no país de entrada. De Kos ele foi para Atenas, em busca de um smugglerpara ir para a Alemanha. Por contar com recursos próprios, Houd pôde pagar um atravessador de novo: 3.800 euros por um passaporte falso e uma passagem para Frankfurt. “Eu me senti como James Bond, com documentos falsos, sentado num avião para a Alemanha”, brinca Houd, uma forma de aliviar o peso da experiência.
Quando Houd desembarcou em Frankfurt, não teve coragem de seguir com o passaporte falso. “Os alemães são conhecidos por reconhecer documentos falsos. Eu queria me privar de passar pela humilhação de ser pego pela polícia”, lembra. Então, decidiu se entregar. Primeiro foi ao banheiro, tirou uma foto do passaporte, mandou para a esposa, como recordação, arrancou a foto – a única coisa verdadeira naquele documento –, rasgou o restante e mandou descarga abaixo. Várias vezes, só para garantir. Depois, procurou a polícia no aeroporto. “Eu disse que havia chegado na Alemanha com passaporte falso e que era sírio, fugindo da guerra, e precisava me refugiar no país”.
As forças policiais encaminharam Houd a um centro de refugiados. Ele enfrentou nove meses pulando de centro em centro até, finalmente, conseguir a permissão para ficar no país e a chance de cumprir o que prometera ao filho: oferecer a ele uma vida mais segura.
Recomeço
Um ano e um mês depois da despedida, o reencontro. “Tudo o que eu fiz foi para esse momento”, diz Houd, sentado no sofá ao lado do filho, Gabriel, e da esposa Hiba, de 26 anos. Ela e o menino chegaram a Alemanha de avião, com as passagens pagas
Agora, eles moram em um apartamento pago pelo governo em Bonn, no noroeste da Alemanha. Quando ouve uma sirene, ou algum barulho mais forte vindo da rua, o pequeno Gabriel ainda esconde a cabeça embaixo do travesseiro. (Agência Brasil)