Com fim da Ceitec, País abre mão de desenvolvimento soberano e autônomo
A ofensiva do Ministério da Economia para liquidar o Ceitec vai contra os interesses reais do país e registra uma série de absurdos – Foto: Reprodução
Lauro Veiga
A
ofensiva do Ministério da Economia para liquidar o Centro Nacional de
Tecnologia Eletrônica Avançada S.A. (Ceitec), única empresa fabricante de
semicondutores da América Latina, num caso já detalhado neste espaço na edição
de sábado (19.12) e agora retomado, vai contra os interesses reais do País e
registra uma série de absurdos – a começar pela decisão em si, que vai obrigar
o Brasil a abrir mão da mínima veleidade de participar de forma soberana e
autônoma da economia do conhecimento, abandonando de vez a intenção de
ingressar nas novas fronteiras da tecnologia por suas próprias pernas.
Não
é exagero. Para o economista Paulo Gala, professor da Fundação Getúlio Vargas
(FGV), a microeletrônica está na “base de praticamente todas as tecnologias
cruciais do futuro, como inteligência artificial, robótica, carros autônomos e
internet das coisas. Está no centro da guerra tecnológica entre as duas maiores
potências do mundo, China e Estados Unidos”.
O
ministro dos mercados, senhor Paulo Guedes, e sua equipe de assessores, tão
ocupados em fazer negócios e liquidar o patrimônio estatal, construído com o
esforço dos brasileiros de fato, com o despudor de sempre, montaram artimanhas
para convencer o País que a “aventura” da Ceitec deu em nada. Como se fosse
mais um caso de desperdício de recursos públicos. Uma mentira deslavada que nem
mesmo os números a que recorrem Guedes e assessores consegue sustentar.
O
primeiro dos absurdos surge já na forma buscada para liquidar a empresa. Como é
notório, a Ceitec foi criada pela Lei 11.759, de 31 de julho de 2008, e fundada
em novembro daquele ano. Agora, o governo decidiu extinguir a empresa por meio
de um mero decreto presidencial, atropelando o Congresso e a própria
Constituição – de resto, já vilipendiada pelo próprio Supremo Tribunal Federal
(STF) quando decidiu liberar o desmonte da Petrobrás, autorizando a venda de
subsidiárias sem a necessidade de aprovação do Congresso, sob a falsa alegação
de que essas filiais não fariam parte do negócio principal da petroleira.
Reconhecimento
internacional
O
secretário especial de desestatização, desinvestimento e mercados do Ministério
da Economia, Salim Mattar, alega que a empresa registrou prejuízo de R$ 12,0
milhões no ano passado e consumiu R$ 907,0 milhões em investimentos do Tesouro
desde sua criação, sem retorno. Mattar segue tática manjada de misturar dados
reais com elocubrações inverídicas, apostando que o pacote será comprado por
todos pelo valor de face.O prejuízo anotado em 2019 encolheu quase 76,0% desde
2016, com salto de 95,7% na receita líquida no mesmo período. A Ceitec registra
avanços reconhecidos internacionalmente, como mostra o jornalista Fausto
Oliveira, no site A Revolução Industrial Brasileira (https://rib.ind.br/), o que
desmente a retórica do assessor de “desinvestimento” – denominação precisa para
a “missão” delegada a ele pelo senhor ministro dos mercados. Os chips da
família CTC13002, com aplicações no controle eletrônico de estoques,
acompanhamento de um único item, logística, segurança, rastreamento de produtos
na linha de produção e até na identificação de bagagens e cargas em geral, foram
reconhecidos “como um dos melhores do mundo para etiquetas eletrônicas RFID
pelo European EPC Competence Center (EECC), que certifica qualidade de
semicondutores para o mercado europeu”, lembra Oliveira.
Balanço
·
A
Ceitec firmou ainda acordo com a Pirelli para fornecimento de chips para
identificação de pneus, solução patenteada internacionalmente pela companhia
brasileira. Desde sua criação, em 2008, foram mais de 40 pedidos de registro de
patentes de propriedade intelectual e modelos de utilidade e encaminhados ao
Instituto Nacional de Propriedade Industrial (Inpi) e a organismos
internacionais.
·
A
empresa colocou no mercado por mais de 90,0 milhões de chips, metade dos quais
apenas entre 2017 e 2019, e parte deles estão em aplicações das multinacionais
Epson e HP. Daquele total ainda, perto de 10,0 milhões de semicondutores
destinaram-se à identificação de veículos.
·
A
empesa lançou neste mês uma plataforma eletroquímica para a fabricação de kits
eletrônicos de diagnóstico de doenças, qualificando-se para participar de um
mercado que movimentou US$ 6,9 bilhões em 2019. Também responde pelo projeto do
microchip que deveria estar no passaporte brasileiro, mas o produto da empresa
foi preterido pela Casa da Moeda, que imprime os passaportes e preferiu
importar os chips, sabe-se lá porque razões.
·
Chega
a ser surpreendente que a empresa tenha avançado tanto sem o apoio do governo.
Em todos os países desenvolvidos, sem exceções, a indústria de semicondutores
floresceu e se consolidou com subsídios e créditos concedidos pelo setor
público e as compras governamentais sempre foram peça fundamental nesse
processo. Segundo Paulo Gala, a China criou recentemente novo fundo, com US$ 29
bilhões (na sequência de um pacote de US$ 23,0 bilhões anunciado em 2014), “para
o país ficar menos dependente dos EUA em semicondutores”.
·
Por
aqui, a Ceitec tem sido submetida a um estrangulamento – embora a evolução dos
números possa sugerir outra leitura, indicando que a empresa tem se tornado
menos dependente do Tesouro. O orçamento atualizado definido pelo governo para
a estatal da microeletrônica despencou de R$ 115,037 milhões em 2015 para R$
82,249 milhões em 2020, num tombo de 28,5% em valores nominais.
·
As
despesas efetivamente pagas recuaram quase 11,0% nos últimos três anos,
baixando de R$ 74,372 milhões em 2017 para R$ 66,253 milhões no ano passado.
Entre janeiro e novembro deste ano, as despesas pagas pelo Tesouro na Ceitec
atingiram R$ 55,065 milhões, representando menos de 67,0% da dotação
orçamentária atualizada, diante de 76,0% em 2017 e 2018. Na média mensal, os
desembolsos caíram 19,2% entre 2017 e 2020.