Apropriação da sexualidade como dominação e controle social
Confira o artigo, desta sexta-feira (23/07), por Manoel L. Bezerra Rocha
Uma das características modernas do fascismo é a apropriação do corpo do outro, numa tentativa de detenção do monopólio de poder decidir sobre o que é socialmente moral e imoral na sexualidade. Todavia, tentar reprimir a fantasia, o desejo ou a libido, enfim, aquilo relacionado ao prazer erótico do outro, pode ser um sinal de frustração pessoal, algo como certa dificuldade de lidar consigo mesmo. Agredir o outro pode ser uma forma de colocar-se como espectador de suas próprias agruras, expostas à prova e à execração em outra pessoa.
A liberdade é um perigo, pois constitui-se em um fator de descontrole, de distanciamento da órbita de vigilância. Neste sentido, como o prazer está associado à sensação de liberdade, há que exercer-se o controle, o disciplinamento, sobre a atividade sexual dos indivíduos. Até o início do século XVII vigorava a franqueza sexual e suas práticas não procuravam o segredo. Não havia subterfúgios nem buscas por palavras sinônímimas ou eufemísticas para referirem-se às genitálias. A partir desse período, o Estado passou a exercer maior controle sobre a vida individual e o controle do prazer sexual tornou-se alvo de repressão. A sexualidade é reduzida à finalidade da procriação. Ou seja, as religiões e o Estado passam a ditar o que as pessoas podem ou não podem fazer com suas próprias libidos. As atividades sexuais passam a ser contidas, mudas, hipócritas. Surgem, portanto, as denominadas técnicas de poder, ou seja, instrumentos de regulamentação e disciplinamento das atividades sexuais. De acordo com o filósofo francês Michel Foucault, os governos percebem que não tem de lidar simplesmente com sujeitos, nem mesmo com um “povo”, porém, com uma “população”, com seus fenômenos específicos e suas variáveis próprias: natalidade, morbidade, esperança de vida, fecundidade, saúde, doença, alimentação. No centro desse problema econômico e político da população: o sexo. O Estado passa a analisar a taxa de natalidade, a idade do casamento, os nascimentos legítimos e ilegítimos, a precocidade e a frequência das relações sexuais.
Nesse novo cenário social, no qual a sociedade condena o sexo a permanecer na obscuridade e valorizado como “segredo”, surgem os “autorizados”, os “sabedores”, os “experts”, em assuntos sexuais, detentores do monopólio do discurso sobre o tema, como religiosos, sexólogos, terapeutas, escritores, instituições estatais de saúde. Curiosamente, são pessoas que, em tese, nada sabem de sexo ou que quase nunca o praticam. Não faz muito tempo li algumas notícias sobre algum curso que iria ensinar as mulheres a utilizarem a musculatura da vagina para “dar maior prazer aos seus maridos”. Essa “técnica”, chamada de pompoarismo, foi exibida para uma plateia de algumas centenas de mulheres, onde a “palestrante”, nua e de pernas abertas na direção do público, mostrava a vagina fumando cigarro, expelindo a fumaça em bizarras baforadas, além de comprimir objetos, como pênis de borracha, e a expelir bolinhas de plástico. Soube-se, depois, que o valor cobrado pelos ingressos custou um absurdo e, ao final do “curso”, as expectadoras eram convidadas a comprarem o livro com mais detalhes sobre o tema.
O público reprimido só pode “libertar-se” da opressão em um contexto ambiental temporariamente permitido, como o debate sobre uma obra de arte, um livro, um filme, uma palestra sobre como ter orgasmo, sobre como manipular a genitália, etc. Essa oportunidade traduz-se como um momento de fuga, de liberalidade, de oportunidade para falar de assuntos que a moral não permite, mas que, eventualmente, faz algumas concessões – desde que o debate se circunscreva à temática da obra, nunca como sendo a manifestação de um desejo, de uma fantasia, de uma tara pessoal. Isso explica o grande sucesso de público e de faturamento na comercialização de intimidades e narrativas sexuais que mexem com a fantasia sexual ou fetiches coletivos.
O sexo reduzido ao ambiente do casamento contrasta com a concupiscência ebulitiva, latente no recôndito do universo de possibilidades, do desejo involuntário e autônomo, da entrega plena, despudorada, sem as amarras impostas pelas regras. A liberdade plena para gozar é a característica essencial e definidora da sexualidade; e essa liberdade é incompatível com a atividade convencional, formal, solene, que o controle social impõe. Desta maneira, o chamado “comportamento desviante” sofre não apenas a reprovação social, mas, também e principalmente, a repressão estatal, caracterizado como “delitos contra os deveres do casamento” e os denominados “crimes de ultraje ao pudor”. Essa intervenção estatal repressora penaliza o cônjuge “infrator” nas ações judiciais afetando-o na partilha dos bens e na guarda dos filhos. No Brasil, até recentemente, o Código Penal estipulava pena de prisão para o cônjuge “adúltero” – e essa conduta influencia, até hoje, como causa de sucumbência nos litígios travados nas varas de família. Foucault, assinala que a colocação do sexo em discurso não estaria ordenada no sentido de afastar da realidade as formas de sexualidade insubmissas à economia estrita da reprodução. Através de tais discursos multiplicaram-se as condenações judiciárias das perversões menores, anexou-se a irregularidade sexual à doença mental; da infância à velhice foi definida uma norma do desenvolvimento sexual e cuidadosamente caracterizados todos os desvios possíveis; organizaram-se controles pedagógicos e tratamentos médicos; em torno das mínimas fantasias, os moralistas e, também e sobretudo, os médicos, trouxeram à baila todo o vocabulário enfático da abominação. A vigilância sobre a sexualidade das pessoas passa a ser não apenas um instrumento político de controle social, mas obedece a uma lógica de mercado. As religiões com seu moralismo hipócrita exerce seu papel fundamental de coerção psicológica, inculcando a ideia sobrenatural do pecado. O corpo social, por sua vez, torna-se o vigilante panóptico da moral sexual alheia, muitas vezes apenas como uma maneira de não admitir que o outro faça aquilo que ele gostaria de fazer, mas que é reprimido em si.