Veja relatos de professores da rede pública sobre casos de alunos que estão passando fome
Conselheiro tutelar avalia que fome das crianças nas escolas é sintoma da ausência do Estado
No Brasil todo, professores da rede pública relatam episódios de alunos passando fome. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o cenário atual apresenta o país com 13,7 milhões de desempregados e a inflação de alimentos consumidos em domicílio acumula alta de mais de 13% em 12 meses. Além disso, um estudo da Universidade Livre de Berlim aponta que a insegurança alimentar grave atingia 15% dos domicílios brasileiros em dezembro de 2020, sendo que o percentual chegava a 20,6% nos lares com crianças e jovens de 5 a 17 anos.
A BBC News Brasil ouviu relatos de professores, que foram mantidos em anonimato para preservar a privacidade das crianças citadas, que dizem que alunos com fome sofrem com perda de motivação e apresentam episódios de agressividade com colegas e educadores. Com o retor das aulas presenciais, os estudantes enfrentam os efeitos causados pela pandemia no que se refere à perda de emprego e renda dos pais, além do falecimento de parentes que muitas vezes sustentavam a família.
Uma professora da rede municipal do Rio de Janeiro relatou que uma aluna oito anos, que estuda em uma escola localizada em um complexo de favelas na Zona Norte carioca, desmaiou em setembro de 2021. “Essa aluna chegou bem atrasada. Ela bateu na porta da sala de aula, eu abri e notei que ela não estava bem, mas não consegui entender o porquê. Passei álcool na mão dela e senti a mão muito gelada, num dia em que não estava frio para justificar. Ela sentou e abaixou a cabeça na mesa. Eu estranhei e chamei ela à minha mesa. Ela veio e eu perguntei se ela estava bem. Ela fez com a cabeça que estava, mas com aquele olhinho de que não estava. Perguntei se ela tinha comido naquele dia, ela disse que não. Fui pegar algo para ela na minha mochila —porque eu sempre levo um biscoitinho ou uma fruta para mim mesma. Mas não deu tempo. Ela desmaiou em sala de aula”, conta.
Segundo a professora, uma criança não sabe expressar a urgência da fome, que envolve vergonha e que, para os alunos, isso é algo humilhante, impedindo que expressem.
Conforme outros professores ouvidos pela BBC, os jovens estão abandonando os estudos para trabalhar e ajudar suas famílias na geração de renda e, em alguns casos, crianças moradoras de favelas estão mudando para regiões ainda mais precárias das comunidades devido ao custo do aluguel. Dessa forma, a crise social que bate à porta das escolas faz com que educadores façam o possível para ajudar as crianças e famílias que estão passando por necessidade.
Uma professora de língua portuguesa da rede estadual do Paraná conta que faz campanha para cesta básica para manter os alunos em sala de aula. “Procuro manter meu coração sempre firme, não cair em desespero. A gente respira fundo e vai fazer campanha para cesta básica, para coleta de alimentos, para mantê-los em sala de aula. Eu me sinto às vezes cansada, mas me sinto na obrigação de me manter firme e fazer algo por essas crianças, para que eles sintam que podem contar conosco, que não seremos mais um a abandoná-los”, relata.
Um conselheiro tutelar foi acionado em um bairro da Zona Oeste do Rio de Janeiro para atender ao caso de uma menina de sete anos. De acordo com ele, havia um nervosismo muito grande de uma criança que não tinha histórico de agressividade. “Havia um conflito dentro da escola, um nervosismo muito grande de uma criança sem histórico de agressividade. Ela havia agredido uma colega, depois desafiou a professora e, por fim, acabou tentando agredir a direção. A escola nos chamou para conversar com essa criança e sua família, para saber se se tratava de uma reprodução de violência [quando uma criança agredida reproduz a violência que sofre]. Mas, conversando com essa criança, ela nos relata vontade de comer”.
De acordo com o conselheiro tutelar, o caso da menina é comum em famílias moradoras de bairros pobres. A família da criança estava toda desempregada e tinha como fonte única de renda o benefício do Bolsa Família. “Não é que essa criança não come nada, ela tem acesso à merenda, a um almoço. Mas a alimentação a que ela tem acesso é irregular e insuficiente para esse núcleo familiar. É uma criança que tem a comida contada, às vezes uma vez só no dia e sem um prato rico em nutrientes, em sabores. Muitas vezes, quando falamos em fome, as pessoas entendem que a pessoa não come nada. Mas a fome não é só isso, são necessidades para o desenvolvimento da criança que não estão sendo atendidas. Na realidade, todo o núcleo familiar está passando fome. A verdade é essa”.
Além disso, uma professora de física e matemática do interior de São Paulo, em Sumaré, disse que viu um de seus alunos desmaiar de fome durante a aula de educação física, e conta que não foi um caso isolado. “Não foi o primeiro caso. Com a volta às aulas presenciais, depois da pandemia, temos observado vários casos de alunos passando por necessidade. Casos de fome mesmo, de que o único alimento que o aluno tem é na escola. Nesse caso, nós percebemos na educação física, porque o aluno desmaiou na quadra. Aí, conversando, ficamos sabendo que ele ainda não tinha se alimentado naquele dia e já era o período da tarde”.
Segundo a professora, crianças nessa situação tem dificuldade de aprendizado devido a falta de energia. “A criança com fome não consegue se concentrar. Falta energia nela. Crianças normalmente têm muita energia, então você percebe a apatia”.
A professora de Sumaré conta ainda que logo após o primeiro episódio de um aluno passando mal por fome, as professoras se mobilizaram para recolher doações. “Conseguimos muito alimento e passamos a distribuir às famílias. Você vê a diferença, o aluno vem mais ativo, com mais energia, e as mães ficam muito agradecidas. No caso do aluno que desmaiou, fomos à casa da família levar o que arrecadamos. Chegando lá, a mãe estava extremamente magra, muito abaixo do peso, porque ela estava tirando o pouco que tinha dela para dar para as crianças. Então você vê a gratidão da pessoa”.
A educadora afirma também que os professores se preocupam com o aumento da evasão escolar entre alunos um pouco mais velhos, uma vez que deixam os estudos para ajudar suas famílias. O fim do auxílio emergencial em outubro e a incerteza em relação ao Bolsa Família gera angústia tanto nas famílias quanto nos professores. “Todo mundo está muito preocupado, principalmente as famílias. Já estamos tendo uma evasão muito grande de alunos, porque a prioridade deles é trabalhar e ajudar a levar o sustento para casa. Não é mais estudar, porque a fome é uma necessidade hoje. A partir dos 13, 14 anos está acontecendo essa evasão, que é ainda mais grave no Ensino Médio. Acredito que, com o fim do auxílio emergencial, isso pode aumentar”.
A professora de língua portuguesa da rede estadual do Paraná chama atenção ainda para outro aspecto relevante das escolas no cenário de volta às aulas presenciais. Esse aspecto é referente ao grande número de alunos que ficaram órfãos de pais ou avós e passaram a viver sob cuidado de outros parentes. “Tenho um aluno do 7º ano e a irmã dele está no Ensino Médio no mesmo colégio. Eles foram criados pela avó e, no ano passado, ela faleceu devido à covid e eles simplesmente ficaram órfãos. Eles não têm nenhum recurso, ficaram na casa de parentes. E nós temos vários casos assim, são muitos casos por turma. A escola está tentando monitorar para ver se essas crianças estão bem, quem ficou responsável por elas e se elas contam com alguma rede de proteção”.
Outro fator ressaltado pela professora da rede municipal do Rio de Janeiro, que a aluna desmaiou em sala de aula, é a precarização da moradia de vários alunos. “A favela em si é um lugar vulnerável, mas dentro dela tem lugares onde realmente não tem estrutura nenhuma, não tem saneamento básico, nada. Muitos alunos que antes moravam na favela em locais considerados razoáveis tiveram que se mudar para esses locais mais vulneráveis, porque lá não paga aluguel, não paga nada. Mas as casas são de madeira, em lugares muito complicados, como barrancos. Então está havendo uma migração interna, dentro da própria favela, de famílias que não estavam conseguindo se manter nos lugares por conta dessa crise econômica toda”.
Os professores fazem o que podem para tentar minimizar o sofrimento dos estudantes que passam por dificuldade. Um exemplo é uma professora de ginástica acrobática de um centro público de treinamento desportivo localizado em uma comunidade carente do Distrito Federal, que relatou que doar cestas básicas se tornou rotina. “Teve o caso de uma aluna que começou a passar mal. Encaminhamos à assistência social e essa criança, de 10 anos, contou que estava com fome, que não tinha jantado no dia anterior, nem tomado café da manhã naquele dia. A criança recebeu um lanche a mais e a mãe foi chamada para uma conversa com a psicóloga. Essa mãe relatou que estava sem o que comer em casa, então começamos a distribuir cesta básica para a família”.
O conselheiro tutelar da Zona Oeste do Rio de Janeiro observa que a fome das crianças nas escolas está aliada à ausência do Estado. “O Estado não está cumprindo com sua parte em garantir não só renda, mas que a economia gere empregos para essas famílias. Não existe desenvolvimento infantil completo com barriga vazia. A fome não atinge apenas o estado emocional, ela é da carne, é do corpo. É muito difícil pensarmos que uma criança vai ter acesso a direitos, conseguir ter uma vida plena, se ela está sentindo fome. O acesso à cultura, à educação, ao lazer, tudo isso é impactado quando essa criança não está tendo o mínimo, que é se alimentar. São crianças que, por causa da fome, estão tendo sentimentos e aprendendo sensações muito doloridas e muito cruéis para o tempo delas nessa vida. Como vamos pedir que essa criança tenha concentração dentro da escola, se a barriga dela está roncando?”.