Mulheres dominam mercado da reciclagem e são 70% dos trabalhadores
A falta de incentivos fiscais para as cooperativas é um dos empecilhos para a expansão do modelo de negócio
Repensar, reduzir, reutilizar e reciclar. Essas palavras, aprendidas ainda na escola, fazem parte da rotina de milhares de mulheres brasileiras que sustentam seus lares com a reciclagem. Elas são 70% dos mais de 800 mil trabalhadores no setor que gera receita, emprego e preservação ambiental.
A atividade existe há mais de 50 anos no Brasil, mas ganhou força há cerca de 15 anos, quando foi criado um incentivo fiscal às cooperativas e empresas que trabalham com reciclagem. A medida, no entanto, foi alterada e coloca em risco a sobrevivência das empresas e das famílias que dependem do trabalho.
Claudete Teixeira, 47, acorda cedo todos os dias e deixa o filho adolescente em casa para trabalhar na separação do lixo há seis anos. A Cooperativa Beija Flor, que fica na Granja Cruzeiro do Sul, é a principal fonte de renda da família. “Tudo pode ser reciclado, o meio ambiente agradece isso. Tudo o que a gente recicla deixa de ir para o aterro sanitário, muitas famílias são sustentadas por esse trabalho no Brasil todo”.
O relato de Teixeira, assim como o de muitas mulheres, expõe a negligência dos moradores de Goiânia no tratamento do lixo. A falta de uma separação correta do lixo expõe os trabalhadores a acidentes, especialmente de cortes ou perfurações. “Muitas vezes já cortei com vidro. No caso de seringas as pessoas deveriam pelo menos tirar a agulha e quebrar ela, amassar para que a gente não se machuque”, aconselha.
Mãe solteira e sem auxílio por parte dos governos, ela ainda precisa vender outros produtos para complementar a renda. Na Capital, a única “ajuda” por parte da Prefeitura de Goiânia é a distribuição dos materiais recicláveis nas cooperativas.
Sem incentivos e financiamentos
A falta de incentivos fiscais para as cooperativas é um dos empecilhos para a expansão do modelo de negócio. Vice-presidente da Associação Brasileira das Empresas de Reciclagem e Gerenciamento de Resíduos, Romar Martins Parreira, conta que uma modificação recente na lei de incentivos pode inviabilizar os negócios. A chamada Lei do Bem (Lei 11.196/05) isentou o pagamento do PIS/Cofins para as empresas de reciclagem e cooperativas.
“Mas por uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), as cooperativas deverão voltar a pagar 9,25% de PIS e Cofins”, explica Parreira. A resolução abre precedentes como a sonegação fiscal, ou, em casos mais extremos, a falência das empresas. Ele conta que o alto custo das máquinas sem opção de financiamento bancário dificulta o crescimento e até mesmo a sustentabilidade do setor. “Financiar um trator para sua fazenda, você consegue condições vantajosas, mas o maquinário usado na reciclagem não. A reciclagem poderia gerar mais empregos”.
Peregrinação
Bernadete Bruno, 49, deixou quase toda a família no Haiti em busca de uma vida melhor. Ela conheceu a reciclagem a partir de um amigo que a indicou na cooperativa e trabalha com a separação dos materiais há três anos. Ainda assim, a renda não é o suficiente para as despesas dela e do filho.
Para complementar a renda, ela conserta objetos que encontra no lixo e vende em feiras de Goiânia, apesar da dificuldade para falar em português. Roupas, calçados, brinquedos e até celulares são os produtos que ela consegue reutilizar.
“Eu acho objetos aqui que dá para mandar consertar e eu revendo. Tem calçado, roupa, brinquedos e até celular”, relata ainda com dificuldade em pronunciar algumas palavras em português. Na cooperativa Beija-flor a maioria das trabalhadoras são mulheres e destas quatro são haitianas.
Garantia de sustento
Roseane Damaceno,27, veio do Piauí em 2013 e então trabalha na separação e reciclagem dos materiais. É dela a missão de garantir o sustento dos cinco filhos e do marido, que está desempregado. A recicladora tem rendimento médio de R$1.200 fruto do trabalho e R$400 do Auxílio Brasil que recebe do Governo Federal. Com esse dinheiro ela diz que consegue viver com muita dificuldade.
Os materiais saem da cooperativa Beija Flor já recolhidos e separados pelas trabalhadoras seguem para o galpão da empresa que compra o produto, na BR-153. As indústrias são responsáveis pela transformação do material em novas embalagens ou em novos produtos que voltam para as prateleiras. Para garantir o pagamento dos trabalhadores, as indústrias, muitas vezes, pagam o valor adiantado para as cooperativas.
Remuneração de catadores é a chave para a reciclagem
Aumentar a reciclagem é o caminho para diminuir o desperdício, gerar renda e encaminhar soluções para acabar com os lixões a céu aberto. A média nacional de reciclagem não ultrapassa 4% do total produzido, de acordo com a Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (Abrelpe).
Presidente da Associação de Catadores do Aterro Metropolitano de Jardim Gramacho (Acamjg) explica que a reciclagem no Brasil nasce a partir da pobreza e exclusão. Na conferência Global Experience, que aborda do incentivo à reciclagem do lixo às fontes renováveis de energia, ele apontou que somente o estado do Rio de Janeiro desperdiça cerca de R$ 1 bilhão por não fazer a reciclagem da forma correta.
A falta de uma remuneração digna para os catadores e a invisibilidade perante o setor público contribui para a depreciação do setor. Segundo dados da consultoria McKinsey, o fornecimento de plásticos oriundos de seu processo poderia crescer de 4% a 8% da demanda total de polímeros até 2030 e exigiria a implantação de mais de U$ 40 bilhões em investimentos na próxima década. O estudo ainda aponta que a reciclagem avançada tem um potencial de crescimento anual da ordem de 20% até 2030.
Os índices brasileiros ficaram muito abaixo de países de mesma faixa de renda e grau de desenvolvimento econômico, como Chile, Argentina, África do Sul e Turquia, que apresentam média de 16% de reciclagem, segundo dados da International Solid Waste Association (ISWA). Em relação aos países desenvolvidos, o caminho a percorrer é ainda mais longo. Na Alemanha, por exemplo, o índice de reciclagem alcança 67%.
Os materiais recicláveis secos representaram 33,6% do total de 82,5 milhões de toneladas anuais de resíduos sólidos urbanos (RSU) produzidos durante o período da pandemia da covid-19, nos anos de 2020 e 2021. De acordo com o Panorama dos Resíduos Sólidos 2021, divulgado pela Abrelpe, o Brasil contabilizou 27,7 milhões de toneladas anuais de resíduos recicláveis.
Embora os materiais recicláveis secos tenham ampliado sua participação no total de resíduos sólidos urbanos (saindo de 31,7% em 2012 para 33,6% na última pesquisa), a fração orgânica permanece predominando como principal componente, com 45,3%, o que representa pouco mais de 37 milhões toneladas/ano.