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quarta-feira, 25 de dezembro de 2024
Reportagem Agência Pública

“Já atingimos ponto de não retorno” em algumas regiões da Amazônia, diz pesquisadora

Marlene Quintanilla coordenou o estudo “Amazônia contra o relógio: Um diagnóstico regional sobre onde e como proteger 80% até 2025”, lançado nesta segunda.

Postado em 5 de setembro de 2022 por Redação

Por Anna Beatriz Anjos | Agência Pública

“O Brasil é o país com a porção mais extensa da Amazônia e o que menos está fazendo para conservá-la.” Esta é a avaliação da engenheira florestal boliviana Marlene Quintanilla, coordenadora do estudo “Amazônia contra o relógio: Um diagnóstico regional sobre onde e como proteger 80% até 2025”, lançado nesta segunda-feira (5), dia da Amazônia. A pesquisa, desenvolvida a partir de 2021 com dados de 1985 a 2020, identificou que, dos nove países amazônicos, o Brasil é o que apresenta o pior nível de transformação (ou seja, desmatamento) e degradação do bioma – 34%. O índice da Bolívia, segunda colocada no ranking, é dez pontos menor, de 24%.

Os pesquisadores da Red Amazónica de Información Socioambiental Georreferenciada (RAISG), da qual Quintanilla faz parte, identificaram que 26% da Amazônia já estão transformados ou altamente degradados, o que a coloca no patamar do ponto de não retorno definido por trabalhos científicos anteriores – este ponto chegaria, de acordo com outros estudos, quando transformação e degradação somadas ultrapassassem o limiar de 20% a 25%.

Além disso, o novo relatório – coordenado por Quintanilla e elaborado pela RAISG em parceria com a Coordenação das Organizações Indígenas da Bacia Amazônica (COICA) e Stand.Earth – revela que, caso a atual tendência de desmatamento se mantenha, “a Amazônia como conhecemos hoje não chegará a 2025”. Os efeitos das altas taxas de desmatamento e degradação já estão causando a perda de serviços ecossistêmicos cruciais prestados pela floresta, como a regulação do regime de chuvas. “A função ambiental da Amazônia está mudando de maneira negativa”, afirma Quintanilla.

Mas o estudo sugere uma forma de enfrentar esse cenário: a demarcação de terras indígenas e destinação permanente de recursos orçamentários às comunidades que nelas vivem. De acordo com o levantamento, 86% do desmatamento na Amazônia aconteceu fora de territórios indígenas e áreas protegidas, embora eles abarquem pouco menos da metade do bioma (48%). E apesar de as unidades de conservação terem sido criadas exatamente com a finalidade de preservação ambiental, as terras indígenas são igualmente ou ainda mais eficazes nesse sentido, mostram os dados. “Os meios de vida e a cultura tradicional dos povos indígenas da Amazônia são mais compatíveis com sua conservação do que qualquer outra estratégia que se está implementando”, destaca a pesquisadora.

O estudo considerou para análise uma região de 847 milhões de hectares que abrange os limites do bioma amazônico na Colômbia e Venezuela; os limites da bacia amazônica no Equador, Peru e Bolívia; as bacias do Amazonas e do Araguaia-Tocantins e a extensão completa da Amazônia Legal no Brasil; e todo o território da Guiana, Guiana Francesa e Suriname. Ele foi produzido no âmbito da campanha “Amazônia para a Vida: Proteger 80% até 2025“, lançada pela COICA e organizações parceiras em setembro de 2021.

Para Marlene Quintanilla, pesquisadora da RAISG, “frear o desmatamento no Brasil e Bolívia poderia reverter o que está acontecendo com a Amazônia”. | Foto: Arquivo Pessoal

O relatório evidencia que o tipping point – o ponto de não retorno da Amazônia – já é uma realidade em algumas regiões. O que isso significa, na prática?

É uma meta ambiciosa proteger a Amazônia em 80% até 2025. Nossa primeira pergunta foi: como está a Amazônia, será que esses 80% existem e estão em bom estado? Uma das grandes descobertas do estudo é que cerca de 20% da Amazônia apresenta níveis importantes de transformação e outros 6% estão em alta degradação. Não há mais 80% da Amazônia totalmente conservados. Então nos perguntamos: já atingimos o ponto de não retorno? Porque sempre o encaramos como algo futuro, que não sabíamos exatamente quando ocorreria, mas do qual nos aproximávamos cada vez mais. Nossa análise indica que, em nível regional, praticamente já atingimos esse ponto de não retorno. Há uma metamorfose ocorrendo na Amazônia que, pelas mudanças e atividades antrópicas, está acelerando a transformação das funções ambientais do bioma. Um dado que não está no estudo diz que parte da Amazônia já gera mais emissões do que captura carbono. Algumas das coisas que sempre destacamos sobre a Amazônia – que ela funcionava como purificador do ar e tinha função de regulação climática – estão mudando. As pesquisas científicas mostram que as secas extremas e os incêndios estão gerando muita mortalidade de árvores e isso, por sua vez, emite muito dióxido de carbono. A função ambiental da Amazônia está mudando de maneira negativa.

O estudo destaca a importância dos povos indígenas no combate à crise climática e de biodiversidade e na proteção da Amazônia. Por que seu papel é tão central? E por que as terras indígenas apresentam índices de preservação até melhores do que unidades de conservação?

O relatório mostra que os territórios indígenas têm uma função muito mais chave do que pensávamos em termos de conservação da Amazônia. Neles, os níveis de transformação e de degradação são mínimos e menores do que nas áreas protegidas, instituídas justamente com o propósito de conservação dos ecossistemas. A intenção não é criar uma concorrência entre esses regimes, mas queremos passar a mensagem de que os meios de vida e a cultura tradicional dos povos indígenas da Amazônia são mais compatíveis com sua conservação do que qualquer outra estratégia que se está implementando. Por isso devemos valorizar mais os territórios indígenas e encará-los como nossos melhores aliados para proteger a Amazônia, pois ela não interessa apenas a nós que nela vivemos, mas se trata da regulação climática global. Cerca de 48% da Amazônia estão protegidos, seja por terras indígenas ou unidades de conservação. Nos territórios indígenas, o nível de transformação é de 4%; já nas áreas protegidas, é de 6%. Os 52% do bioma que estão fora de qualquer área protegida já sofreram 33% de transformação e cerca de 10% de degradação – ou seja, 43% de áreas com alta degradação. A criação de áreas protegidas é uma etapa importante, mas em alguns países há um abandono na destinação de recursos a elas. Se isso acontece, elas ficam abertas à transformação e degradação. Já as terras indígenas demarcadas, havendo ou não a destinação de recursos, representam uma garantia maior na conservação da Amazônia, segundo os dados que geramos.

Segundo o estudo, “ampliar os territórios e direitos indígenas é um imperativo global para mitigar a crise climática e de biodiversidade”. | Foto: José Cícero/Agência Pública

Os dados do relatório indicam também que o Brasil é o país amazônico com os maiores índices de transformação e degradação da floresta. É possível afirmar que o Brasil é quem pior cuida da Amazônia?

As mudanças mais bruscas estão na Bolívia e no Brasil. A Amazônia brasileira já tem um nível de transformação de 25% e de 9% de degradação. Principalmente na parte sudeste [onde está o norte do Mato Grosso e o sul do Pará], as pessoas já sentem as mudanças – mais secas e incêndios, menos água e muitas transformações nos ecossistemas. E os povos indígenas sentem muito mais tudo isso porque vivem na floresta. O segundo país com níveis importantes para o ponto de não retorno é a Bolívia: 20% da Amazônia boliviana já se transformaram e 4% estão altamente degradados. Em terceiro lugar, vem o Equador, com cerca de 15% de áreas transformadas e 1% degradada, e depois a Colômbia, com 12% de áreas transformadas e 2% de degradação. Os países que seguem essa dinâmica são Peru e Venezuela. O Brasil é o país com a porção mais extensa da Amazônia e o que menos está fazendo para conservá-la, lamentavelmente.

Qual a dimensão da destruição da Amazônia nos últimos anos, segundo os dados levantados para o relatório?

Identificamos que cerca de 2 milhões de hectares são desmatados anualmente na Amazônia. Já os incêndios atingem todos os anos aproximadamente 17 milhões de hectares. Para termos uma dimensão melhor, a superfície desmatada por ano é similar à área do Haiti – essa é a velocidade do desmatamento na Amazônia. E em relação aos incêndios é muito maior. O pior ano em termos de incêndios para a Amazônia foi 2020, quando a superfície queimada foi maior do que extensão do Equador. É incrível o nível de desmatamento que está ocorrendo, e o de incêndios é ainda pior. E grande parte disso, sobretudo em relação aos incêndios, está ocorrendo no Brasil e na Bolívia. Da perspectiva internacional, as políticas de conservação da Amazônia devem estar mais dirigidas a esses dois países.

Qual é o peso da política ambiental do governo federal e dos estados brasileiros para a preservação da Amazônia?

Se os governos de países como Brasil e Bolívia não atuarem de maneira séria para conservá-la, todo o esforço global será incipiente. A profundidade do problema na Amazônia está relacionada a uma questão legal, o que tem muito a ver com a demarcação de terras indígenas. Nossa análise aponta que há 255 milhões de hectares [fora de terras indígenas e unidades de conservação] que poderiam ser a solução para evitar o ponto de não retorno, e a estimativa da COICA é de que existem 100 milhões de hectares de terras indígenas sendo demandadas [por diferentes etnias]. Se essa demanda fosse atendida, teríamos em parte a solução. E essa solução está nas mãos dos governos do Brasil, em grande parte, e também dos governos da Bolívia, Equador e dos outros países [amazônicos]. Se não se atende à demanda de demarcação de terras indígenas, esses 100 milhões de hectares com certeza serão convertidos em outros tipos de propriedades. E, pelo que temos visto, o que não está em terras indígenas ou áreas protegidas acaba sofrendo degradação e transformação. Além disso, é importante destinar recursos para as comunidades indígenas, porque elas estão cumprindo uma função de preservação da qual nós, que estamos na cidade, também nos beneficiamos.

Se a atual tendência de desmatamento se mantiver, “a Amazônia como conhecemos hoje não chegará a 2025”, destaca a pesquisa. | Foto: Felipe Werneck/Ibama

Uma das 13 propostas do relatório é a “moratória imediata” do desmatamento na Amazônia. Como ela se daria?

A moratória deveria abranger a sua totalidade porque há uma emergência global. Porém, as realidades entre os países são distintas, e acredito que Brasil e Bolívia precisam de uma moratória imediata porque são os países com níveis mais avançados de desmatamento e degradação da Amazônia. Frear o desmatamento em ambos poderia reverter o que está acontecendo com a Amazônia. E obviamente esse modelo poderia ser replicado nos outros países. É importante mostrar que a floresta tem valor econômico e social muito mais alto do que uma plantação ou um pasto. Com a moratória, não se pretende atrasar o desenvolvimento dos países, pelo contrário, precisamos perceber o potencial econômico da floresta, há muitos recursos em madeira e para além dela que podem potencializar o desenvolvimento econômico. É preciso olhar para a floresta em pé como a melhor alternativa para a economia e a função social que desempenha essas áreas.

Outra proposta pede o “perdão condicionado” das dívidas dos países amazônicos por parte das instituições financeiras internacionais. Por que isso seria importante?

Essa proposta vem da COICA. Os territórios indígenas têm sido muito afetados nos últimos anos e não têm recebido apoio dos governos – pelo contrário, têm sofrido invasões. O perdão da dívida significa um incentivo ao apoio a esses territórios e que os governos possam destinar recursos às organizações indígenas que existem em cada país.

De acordo com o relatório, as áreas destinadas à agricultura na Amazônia triplicaram desde 1985 e o setor é responsável por 84% do desmatamento da floresta. No Brasil, o agronegócio tem muita força econômica e política e é majoritariamente contrário à agenda de preservação ambiental. Como resolver essa questão?

Sempre se olhou muito para a Amazônia como território para o agronegócio. Agora, a pecuária está muito forte, e seus impactos não se restringem ao desmatamento, estão também nas emissões de gases de efeito estufa oriundas da atividade – 2% das emissões globais vêm da pecuária da Amazônia, é uma contribuição importante. Não queremos olhar para os agricultores e pecuaristas como inimigos porque sabemos que geram empregos e movimento econômico para seus países, o problema é que o setor está sendo afetado pelas mudanças climáticas. O regime de chuvas está sendo alterado, já não há muita água e os cultivos precisam de irrigação. Um rebanho de gado, por exemplo, necessita de 40 litros de água por dia. Chegamos a um ponto em que a expansão do agronegócio não deveria avançar mais, porque a carga agrícola e pecuária na Amazônia já é muito intensa e não será sustentável, sobretudo em relação à água. É importante que o setor – os investidores principalmente – valorizem o manejo florestal e que nós diversifiquemos a produção econômica na Amazônia. No fim das contas, queremos alertar os empresários do agronegócio de que seus investimentos estão em risco se a Amazônia não for preservada.

Estamos a um mês da eleição presidencial no Brasil e a preservação da Amazônia, por enquanto, não é um dos assuntos mais importantes nas agendas dos principais candidatos. O quanto isso preocupa vocês, pesquisadores, que estão fazendo alertas tão assustadores sobre a destruição da floresta?

Nós não perdemos a esperança, produzimos esses estudos justamente para que sejam lidos. Sei que isso pode ser muito otimista, mas dar visibilidade à informação para que os governos tenham à disposição esse tipo de análise vai gerar, em algum momento, algum nível de consciência pelo menos, senão de justiça. Existe a advertência por parte da comunidade científica, e agora, neste relatório, fazemos uma aliança com a experiência dos povos indígenas e seu papel na preservação ambiental.

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