Vício em jogos cresce no Brasil e acende alerta para a ludopatia
Com o início da CPI que investiga o impacto do crescimento das casas de apostas digitais no orçamento das famílias brasileiras, cresce também a atenção para os danos causados por esse hábito. A Organização Mundial da Saúde (OMS) reconhece o vício em jogos de azar como uma condição médica, denominada ludopatia. Trata-se de um transtorno […]
Com o início da CPI que investiga o impacto do crescimento das casas de apostas digitais no orçamento das famílias brasileiras, cresce também a atenção para os danos causados por esse hábito. A Organização Mundial da Saúde (OMS) reconhece o vício em jogos de azar como uma condição médica, denominada ludopatia. Trata-se de um transtorno caracterizado por um impulso incontrolável de continuar apostando, mesmo diante de perdas significativas. A condição já consta na Classificação Internacional de Doenças (CID), sob os códigos 10-Z72.6 (mania de jogo e apostas) e 10-F63.0 (jogo patológico).
A ludopatia, conhecida como o transtorno do vício em jogos, opera sob os mesmos mecanismos neurológicos que envolvem a dependência de substâncias como o álcool e outras drogas. Essa condição é desencadeada pelo surgimento da fissura, um impulso incontrolável de continuar jogando ou apostando. Diferente das dependências químicas tradicionais, no caso da ludopatia o objeto do vício não é uma substância, mas sim a sensação de prazer gerada pelo ato de apostar.
Esse comportamento está diretamente ligado a um processo químico cerebral que ativa o chamado sistema de recompensa, um circuito neural responsável por registrar e reforçar estímulos associados à satisfação e ao prazer. A dopamina, neurotransmissor que atua nesse sistema, é liberada em grande quantidade durante as apostas, o que intensifica a sensação de euforia, reduz o julgamento sobre riscos e favorece a repetição do comportamento compulsivo.
Estudos recentes indicam que a fissura provocada pelas apostas pode ser tão intensa quanto a sentida por usuários de substâncias como a cocaína ou o álcool. Embora o vício em jogos tenha ganhado mais visibilidade com o avanço das apostas online, ele não é um fenômeno recente. Há décadas, o problema já era observado em frequentadores de bingos, jogos de cartas e máquinas caça-níqueis. No Brasil, desde 1993, a Irmandade de Jogadores Anônimos atua oferecendo apoio a pessoas que enfrentam esse tipo de dependência.

Especialistas destacam que qualquer indivíduo, em qualquer fase da vida, pode desenvolver esse transtorno. Eles ressaltam a importância da atenção aos sinais iniciais, pois, como ocorre em outros tipos de vício, o processo de adoecimento costuma ser gradual. Muitos apostadores só percebem que perderam o controle quando os prejuízos já são evidentes, como ocorreu com Patrícia, cujo relato ilustra a dificuldade de reconhecer a progressão do hábito para um quadro patológico.
Entre os sinais observados estão a preocupação excessiva com o jogo, o aumento progressivo dos valores apostados em busca da mesma excitação inicial, a frustração diante de tentativas frustradas de parar, além de comportamentos como jogar para aliviar emoções negativas, mentir para ocultar o vício, comprometer relacionamentos pessoais e recorrer a empréstimos ou ajudas financeiras devido às perdas acumuladas.
Vícios em jogos de Azar
O avanço dos cassinos online e a acessibilidade por meio dos celulares facilitaram o acesso aos jogos de azar, contribuindo para o crescimento de casos. Muitos relataram ter iniciado por curiosidade ou como passatempo, mas rapidamente se viram envolvidos em um ciclo prejudicial.
Dados recentes revelam que cerca de 10,9 milhões de brasileiros com mais de 14 anos, o que representa 6,8% dessa faixa etária, jogam de maneira que acarreta consequências emocionais, econômicas, familiares ou profissionais, sendo classificados como jogadores de risco. Mais alarmante ainda é o fato de que aproximadamente 1,4 milhão de pessoas (ou 0,8% da população acima dos 14 anos) apresentam um padrão de apostas mais grave, compatível com o diagnóstico do transtorno do jogo, condição que envolve o desejo persistente de apostar apesar dos prejuízos.
Esses dados integram o Lenad III, estudo divulgado em março, durante o lançamento do Observatório Brasileiro de Informações sobre Drogas (Obid), em Brasília. A pesquisa analisou a frequência e os impactos dos jogos de aposta no país. Foram entrevistadas 4.860 pessoas, entre elas 876 adolescentes entre 14 e 18 anos e 3.984 adultos, de ambos os sexos. Os participantes responderam a nove perguntas do Índice de Gravidade do Jogo Problemático (PGSI), ferramenta internacional utilizada para medir os danos pessoais, sociais e financeiros associados ao comportamento de apostar.
Segundo o levantamento, 10,5% dos adolescentes entre 14 e 17 anos afirmaram ter feito apostas no último ano, sendo que 55,2% desse grupo já se encontram em uma zona considerada de risco para o desenvolvimento do vício.
No caso da psicóloga Rayane Oliveira, mãe de Arthur, de 17 anos, a preocupação surgiu após perceber um comportamento diferente no filho. Acostumada a dar uma mesada mensal ao adolescente, ela inicialmente acreditava que o valor era utilizado para a compra de jogos eletrônicos. No entanto, com o passar do tempo, descobriu que o dinheiro estava sendo direcionado para apostas online.
“Resolvi verificar o celular dele, justamente por precaução, já que sabemos que a internet oferece muitos conteúdos inadequados. Foi então que encontrei diversos links que levavam a sites de apostas, as chamadas ‘bets’. Perguntei diretamente se ele usava o dinheiro com isso e ele confirmou. Disse que, em alguns casos, conseguia dobrar a quantia, mas também perdia tudo”, relatou Rayane.
O estudo também aponta que indivíduos com renda inferior a um salário mínimo apresentam três vezes mais chances de desenvolver um padrão de jogo de risco ou patológico, independentemente do sexo ou da idade.
A psicóloga Rayane Oliveira relata que, além de vivenciar a situação como mãe, também acompanha de perto os impactos do vício em jogos de azar entre seus pacientes. Em um dos casos mais marcantes, um homem revelou ter perdido todo o décimo terceiro salário em uma única aposta.
“Estamos vivendo um momento crítico na sociedade. Cada vez mais pessoas estão sendo seduzidas por falsas promessas propagadas por influenciadores digitais. Meu paciente foi uma dessas vítimas. Ele apostou quase três mil reais, um valor que representa muito para quem vive com recursos limitados. É devastador”, afirma Rayane.
Outro dado relevante é o avanço das bets no Brasil: 9,3 milhões de pessoas afirmam utilizar plataformas desse tipo, tornando essa modalidade a segunda mais popular entre os brasileiros, superando até mesmo o tradicional jogo do bicho. Ainda assim, o principal ambiente de apostas no país continua sendo o sistema de loterias.