A beleza não pode mais ser sustentada à custa do sofrimento
Projeto de lei aprovado pela Câmara aguarda sanção de Lula até 31 de julho. Nova legislação prevê multas para empresas que venderem produtos testados em animais
O Brasil pode estar prestes a virar a página sobre uma das práticas mais controversas da indústria cosmética. O Projeto de Lei nº 3.062, de 2022, que proíbe testes em animais para a produção e comercialização de cosméticos, foi aprovado pela Câmara dos Deputados no dia 9 de julho e agora aguarda a sanção presidencial. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva tem até o dia 31 deste mês para decidir se transforma a proposta em lei. Caso assine, o país passará a integrar um grupo de mais de 40 nações que já baniram esse tipo de experimento.
A iniciativa legislativa chega para preencher uma lacuna deixada pela Resolução Normativa nº 58, do Conselho Nacional de Controle de Experimentação Animal (Concea), publicada em 2023. O texto da resolução proibia testes em animais quando já existirem métodos alternativos validados, mas não estabelecia punições para empresas que descumprissem a diretriz. Com a nova lei, essa brecha deve ser fechada com a previsão de sanções concretas: empresas que fabricarem ou venderem cosméticos testados em animais – mesmo que os testes tenham sido feitos no exterior, estarão sujeitas a multas.
O projeto aprovado altera a Lei nº 11.794/2008, que regulamenta a utilização de animais em atividades científicas no país. A nova norma vai além do uso em laboratórios nacionais. Ela prevê a responsabilização de marcas que importam produtos com histórico de testes em animais, o que pressiona empresas multinacionais a se adequarem aos padrões brasileiros. Segundo o texto, estarão proibidos tanto os testes de ingredientes quanto os de produtos acabados.
Na prática, a proposta é um reflexo de mudanças culturais e de mercado que vêm ganhando força nas últimas décadas. A demanda por cosméticos éticos, veganos e cruelty-free (livres de crueldade animal) cresceu junto com o movimento de consumo sustentável. De acordo com estudo publicado em 2015 pelo Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável (Cebds), a maioria dos brasileiros já demonstrava preferência por comprar menos, mas com mais qualidade e responsabilidade socioambiental. Essa tendência se intensificou nos anos seguintes, especialmente entre jovens consumidores urbanos.
A busca por alternativas aos testes em animais, por sua vez, também avançou em laboratórios e centros de pesquisa. Entre os métodos substitutivos mais utilizados estão os tecidos sintéticos que simulam a pele humana, culturas de células em 3D e sistemas computacionais de modelagem toxicológica. Em países como Alemanha, Reino Unido e Holanda, essas soluções já substituem completamente os testes em animais na indústria de higiene pessoal e perfumaria.
No Brasil, instituições como o Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia (Inmetro), a Fiocruz e universidades públicas têm investido no desenvolvimento de técnicas alternativas. Apesar dos avanços, especialistas alertam para a necessidade de ampliar o financiamento e a validação regulatória desses métodos, para que possam ser aplicados em larga escala por empresas de diferentes portes.
A sanção do projeto também toca em debates éticos mais amplos. Por trás da aparência limpa e suave de um shampoo ou batom, escondem-se muitas vezes práticas que envolvem sofrimento animal prolongado. Cegueiras induzidas, intoxicações e até mortes são efeitos colaterais de procedimentos feitos em coelhos, camundongos e porquinhos-da-índia. Organizações como a Humane Society International e o Fórum Nacional de Proteção e Defesa Animal, que participaram da articulação do PL, argumentam que tais métodos são não apenas cruéis, mas ultrapassados.
Caso Lula sancione a lei, o Brasil se juntará a países como Índia, Austrália, Colômbia e todos os membros da União Europeia, que já baniram testes cosméticos em animais. Também sinalizará para o mercado global uma posição mais clara sobre o compromisso com o bem-estar animal e a sustentabilidade. O desafio seguinte será garantir a efetividade da norma, a fiscalização do comércio e a educação do consumidor.
Num mercado em que imagem e reputação carregam tanto peso quanto a fórmula do produto, a transparência deixou de ser um diferencial simbólico e passou a integrar as exigências regulatórias e comerciais. Embora nem todos os consumidores priorizem critérios éticos ao consumir, cresce o número daqueles que demonstram interesse por práticas sustentáveis, produção responsável e respeito ao bem-estar animal. Nesse contexto, adaptar-se às novas normas pode representar, para muitas empresas, não apenas o cumprimento de uma obrigação legal, mas também uma estratégia de alinhamento com um perfil de consumo cada vez mais atento ao impacto moral e ambiental dos bens que adquire.