A infância que recai sobre os ombros envelhecidos dos avós
Sem reconhecimento legal nem apoio do Estado, milhões de avós no Brasil assumem sozinhos a criação dos netos em contextos marcados por abandono, vulnerabilidade e omissão institucional
Há uma geração que não se aposentou do cuidado. Avós que criam netos não vivem um segundo tempo da vida, mas uma extensão da primeira jornada. Carregam nas costas a rotina doméstica, a criação de crianças e a ausência de políticas públicas. No sábado (26), Dia dos Avós, milhões deles estarão preparando o café da manhã, resolvendo pendências no posto de saúde, organizando contas da casa ou ajudando os netos com as tarefas escolares. Não por opção, mas por falta de alternativa.
Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua), realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mais de 3,6 milhões de crianças e adolescentes vivem sob a responsabilidade de seus avós no Brasil. Em cerca de 500 mil lares, apenas os avós estão presentes, sem a figura dos pais. Esse cenário é impulsionado por fatores como abandono, dependência química, morte, violência ou encarceramento dos pais. A Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) estima que mais de 130 mil crianças perderam um ou ambos os responsáveis para a Covid-19, agravando ainda mais essa dinâmica.
A maioria desses avós não possui guarda formal, o que limita o acesso a direitos básicos. Sem documentação oficial, é difícil matricular os netos na escola, acessar o Programa Bolsa Família ou obter atendimento médico regular. A Cartilha de Orientações sobre Guarda de Crianças pelos Avós, lançada em 2023 pelo Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC), alerta que a informalidade torna esses cuidadores para o sistema.
O perfil predominante é o de mulheres, muitas já aposentadas ou vivendo da informalidade, que assumem o cuidado sozinhas. Estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) indica que 75% dos arranjos em que avós criam netos são liderados por mulheres. Em geral, são avós negras, de baixa escolaridade, que arcam com responsabilidades sem suporte jurídico, financeiro ou psicológico.
O Estado brasileiro ainda opera com base em um modelo familiar convencional. As políticas sociais não reconhecem os arranjos reais que sustentam milhões de lares. Segundo o relatório “Cenário da Infância e Adolescência no Brasil”, publicado pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), quase metade das famílias brasileiras não seguem o modelo tradicional de pai, mãe e filhos biológicos. Mesmo assim, a legislação continua exigindo documentos formais em situações marcadas por vínculos afetivos que não cabem em certidões.
Tornar visível o trabalho desses avós é o primeiro passo para romper com a indiferença. Denunciar a omissão institucional e exigir políticas que reconheçam a complexidade dos vínculos familiares no Brasil é uma urgência. Em milhares de lares, são eles que asseguram a continuidade da infância diante do colapso das estruturas que deveriam protegê-la. Sustentam, com o corpo cansado e a coragem intacta, não só os netos, mas o próprio sentido de futuro, mesmo quando faltam redes, garantias e reconhecimento.