Presença feminina nas oficinas cresce 230% e redefine perfil do setor automotivo
Entre os jovens com até 24 anos no setor, 43% já são mulheres
O mercado de reparação automotiva, historicamente dominado por homens, vive uma transformação silenciosa, porém robusta. A presença de mulheres no setor cresceu 230% nos últimos seis anos, passando de 5% em 2019 para 16,5% em 2025, segundo levantamento da Oficina Brasil. O dado reflete uma mudança cultural e estrutural nas oficinas mecânicas brasileiras, com mulheres não apenas operando ferramentas, mas também assumindo a gestão de negócios e cargos técnicos em um ambiente antes hostil à diversidade.
Esse novo cenário tem rosto, nome e trajetória. A mecânica Priscilla Kagohara, de 36 anos, cresceu entre carros na oficina do pai, mas só anos depois decidiu romper com o mercado corporativo e voltar às origens. Após quase uma década em uma multinacional do setor financeiro, ela se tornou dona e mecânica em tempo integral em seu próprio centro automotivo. “Quando começamos a desmontar motor e descer câmbio, eu senti que ali estava nascendo para a mecânica”, afirma.
Priscilla é parte de uma geração que tem enfrentado estigmas e desafios para ocupar o espaço profissional com autoridade e conhecimento. Segundo ela, o machismo ainda se manifesta no dia a dia, seja no comportamento de funcionários que resistem à liderança feminina, seja na desconfiança de clientes. “Já teve cliente que pediu para falar com o mecânico. Eu disse: ‘pode falar comigo mesmo’. Ele conferiu com outro profissional se o que eu falei estava certo. E estava”, lembra.
Geração nova, mentalidade nova
O crescimento feminino no setor também acompanha uma mudança geracional. Entre os profissionais com até 24 anos, 43% são mulheres. Na faixa até 29 anos, esse índice é de 37%. Já entre os que têm entre 50 e 54 anos, apenas 2% são do sexo feminino — percentual praticamente nulo entre os com mais de 60 anos.
De acordo com André Simões, diretor executivo da Oficina Brasil, a média de tempo de atuação no setor ainda é de 21 anos, o que explica a presença majoritária de homens mais velhos. “A entrada feminina vem ganhando força com as novas gerações, principalmente nas áreas de gestão e operação técnica. A mulher está acelerando a profissionalização e a modernização do setor”, afirma.
Na ponta da formação profissional, essa mudança já é perceptível. Cursos técnicos voltados para a área automotiva, como os ofertados por instituições como o Senai, têm registrado aumento na presença de alunas. Segundo a entidade, 12% dos matriculados hoje são mulheres — índice que ainda é considerado baixo, mas que já representa um salto expressivo em relação à década passada.
Greicy Kelly, engenheira mecânica e professora do setor automotivo, acredita que a sala de aula é um ponto crucial da transformação. “Quando entrei nesse universo, não tive professoras mulheres. Hoje eu sou essa referência para outras meninas que querem entrar na área”, relata. Ela defende que mudanças no ambiente físico das oficinas — como vestiários e banheiros femininos — são essenciais para consolidar essa presença.

Liderança com identidade
Além da capacitação técnica, muitas mulheres imprimem uma identidade própria em seus negócios. A organização, o detalhismo e a comunicação clara são apontados como diferenciais por quem atua no segmento. Em vez de decorar paredes com calendários e clichês machistas, há oficinas que apostam em espaços acolhedores e bem estruturados, que garantem conforto, transparência e segurança, principalmente para mulheres que, durante muito tempo, se sentiram intimidadas ao levar um carro para manutenção.
A empresária Andrea Justos começou na mecânica ainda criança, ajudando o pai. Aos 12 anos, já se aventurava no carburador. Enfrentou resistência familiar e preconceito social, mas aos 16 anos abriu sua primeira oficina em um terreno alugado. Hoje, administra uma equipe e estima que 90% de sua clientela seja composta por mulheres. “Muitas já chegaram aqui dizendo que foram enganadas ou assediadas. Eu quis criar um espaço onde elas se sintam à vontade e respeitadas”, explica.
Outra trajetória de ruptura é a de Paula Mascari, que trocou a advocacia pela mecânica. Formada em Direito e com pós-graduação concluída, ela largou a carreira para viver sua verdadeira paixão. Transformou a garagem de casa em oficina e se especializou em preparação de motores. Além do trabalho técnico, Paula também atua em competições, como mecânica de pista em categorias profissionais. “Trocar o Direito pela mecânica foi a melhor decisão da minha vida”, diz.
Desafios ainda presentes
Apesar dos avanços, o caminho para a equidade ainda é longo. As profissionais ouvidas relatam episódios constantes de desconfiança, piadas e até assédio. “No começo, achei que a falta de força física poderia ser um problema. Mas percebi que, na verdade, a forma de lidar com equipamentos e o conhecimento técnico é o que faz a diferença”, diz Giovana Toso, de 30 anos, que começou na profissão influenciada por programas de TV.
A influenciadora Natacha Nikonovas, de 30 anos, também atua na divulgação técnica do setor. Ela relata que ainda enfrenta resistência e precisa provar sua competência a todo momento. “Muita gente acha que não entendo nada só por ser mulher. Já duvidaram até que os carros da minha coleção fossem meus”, afirma.
Especialistas apontam que a ampliação do espaço feminino nas oficinas também responde a uma demanda do mercado consumidor. Atualmente, segundo a Secretaria Nacional de Trânsito (Senatran), o Brasil tem 24,2 milhões de motoristas mulheres, representando 36% das carteiras de habilitação do país. Essa parcela do público busca atendimento transparente, com linguagem acessível e sem discriminação.
Para a pesquisadora Ligia Fabris, da Universidade de Viena, a ocupação de espaços tradicionalmente masculinos é também uma resposta à necessidade de confiança. “Por muito tempo, as mulheres foram alijadas desse saber técnico e tornaram-se alvo fácil de práticas abusivas. Ver outra mulher nesse ambiente gera segurança e representatividade”, analisa.
Mais que tendência: transformação estrutural
A presença feminina no setor automotivo já não é apenas tendência — é uma realidade em construção. E mais do que abrir portas, as profissionais têm mostrado que competência, inovação e cuidado no atendimento também são ferramentas indispensáveis para o sucesso em qualquer segmento.
Ainda que o preconceito não tenha sido completamente superado, o crescimento acelerado da presença feminina em oficinas, cursos técnicos e cargos de liderança indica uma mudança estrutural em curso. Uma transformação que não apenas desafia paradigmas, mas também eleva o padrão de profissionalismo em um setor essencial à mobilidade e à economia brasileira.