Quem escuta a voz cansada dos professores?
Pesquisas revelam prevalência de distúrbios vocais entre docentes, agravada por más condições acústicas, sobrecarga de trabalho e ausência de políticas públicas
Até quando a voz do professor será tratada como recurso inesgotável? A cada retorno às aulas, o mesmo cenário se repete: salas ruidosas, paredes que não isolam som, turmas agitadas. No esforço de manter a atenção dos alunos, a voz é elevada, forçada, gasta. O que parece rotina banal esconde uma epidemia: até 80% dos docentes relatam sintomas vocais, e cerca de 2% chegam a ser afastados por distúrbios que comprometem a continuidade do ensino.
Estudos apontam que os docentes apresentam prevalência muito superior de distúrbios vocais em comparação com a população geral. A principal condição é a disfonia, caracterizada por rouquidão persistente, cansaço ao falar e alterações de tom. A situação compromete a continuidade das aulas e retarda o retorno ao trabalho após licenças médicas.
Ambiente hostil
Um levantamento da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) mostra que as salas de aula, em vez de espaço adequado para a comunicação, funcionam como ambientes de risco. Má acústica e competição sonora com o ruído dos alunos estão entre os principais fatores para o esforço vocal contínuo.
Esse esforço, segundo a pesquisa, não é circunstancial, mas repetitivo e crônico. Ao longo do tempo, leva ao desenvolvimento de lesões como nódulos e pólipos. O estudo também aponta consequências emocionais: a tensão vocal constante eleva os níveis de estresse e favorece afastamentos prolongados.
Prevalência
Outros levantamentos reforçam o quadro. Em 2023, a Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes) registrou que um terço dos professores apresentou quatro ou mais sintomas vocais. Entre os docentes que praticam pouca atividade física, o risco foi 40% maior.
O estudo ainda relaciona a sobrecarga a fatores como jornadas de até 60 horas semanais, exposição ao pó de giz e estresse organizacional. A Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) mostrou que um em cada três professores já percebeu sua prática limitada por problemas de voz, sobretudo em escolas urbanas, onde os níveis de ruído são mais altos.
Definição de fadiga vocal
Uma cartilha publicada em 2024 pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) detalha a chamada fadiga vocal, definida como “um cansaço na voz, perceptível sobretudo ao final do dia, mais comum em mulheres entre 20 e 40 anos”. Entre os sintomas relatados estão rouquidão, falhas, voz fraca e falta de ar.
O documento mostra que, mesmo no ensino superior, professores apresentam elevada prevalência de sintomas, tanto em aulas presenciais quanto em atividades remotas. A fadiga vocal, segundo os autores, compromete a qualidade de vida e o desempenho profissional.
Especialista
De acordo com a otorrinolaringologista Dra. Adriana Hachiya, da Associação Brasileira de Otorrinolaringologia e Cirurgia Cérvico-Facial (ABORL-CCF), “isso ocorre devido aos ao esforço vocal e padrões vocais inadequados devido à sobrecarga das cordas vocais, o que pode levar a lesões causadas por fonotrauma, como inflamações, nódulos vocais e pólipos”.
Ela acrescenta que medidas preventivas poderiam reduzir a incidência dos problemas. “Aquecimento e desaquecimento vocal: técnicas simples do fonoaudiólogo ajudam na preparação e relaxamento da voz, reduzindo sintomas como cansaço e rouquidão”, afirma.
Prevenção
A cartilha da UFES também recomenda hidratação constante, pausas regulares, postura ereta, evitar pigarrear, controlar o estresse e utilizar microfones quando possível. Professores fisicamente ativos apresentam até 40% menos sintomas vocais, segundo pesquisas.
Apesar das recomendações, especialistas apontam a ausência de políticas específicas. Poucas redes de ensino oferecem acompanhamento fonoaudiológico ou investem em melhorias acústicas. Assim, a responsabilidade recai sobre o docente, que adota estratégias individuais sem apoio institucional.
Contradição
A contradição é evidente: a escola, espaço da palavra, tornou-se o lugar onde ela se rompe. Cada licença médica e cada aula dada em voz rouca confirmam um problema reconhecido há anos, mas ainda ignorado por políticas educacionais.
Enquanto não houver investimentos em prevenção, acompanhamento especializado e condições adequadas de trabalho, a epidemia de distúrbios vocais entre professores seguirá sendo tratada como questão individual. O resultado, alertam especialistas, é o comprometimento da saúde dos docentes e da qualidade da educação oferecida aos alunos.