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sexta-feira, 5 de dezembro de 2025
reconhecimento

Trancistas têm profissão reconhecida no Brasil após séculos de invisibilidade

Inclusão do ofício na CBO garante direitos trabalhistas e insere saber ancestral de mulheres negras no mercado formal

Luana Avelarpor Luana Avelar em 2 de setembro de 2025
side view woman with afro hairstyle
Mais que estilo, as tranças preservam saberes ancestrais e fortalecem a identidade negra. Foto: FreePik

O Brasil oficializou em 5 de junho de 2025 a profissão de trancista. O Ministério do Trabalho e Emprego incluiu o ofício na Classificação Brasileira de Ocupações (CBO), sob o código 5161-65, após anos de reivindicação de coletivos de mulheres negras e entidades culturais. A decisão garante aos profissionais acesso a direitos básicos como emissão de nota fiscal, contribuição à Previdência Social, abertura de microempresas e participação em editais culturais.

O reconhecimento tem impacto direto sobre um grupo historicamente marcado pela informalidade. Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua), divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2023, mostram que 47% das mulheres negras brasileiras trabalham sem carteira assinada, contra 38% da média nacional. Até a inclusão na CBO, trancistas faziam parte desse contingente invisibilizado, ainda que sustentassem economias locais e redes comunitárias.

A relevância econômica já havia sido dimensionada. Estudo do Instituto Locomotiva, em parceria com a Central Única das Favelas (CUFA), publicado em 2022, estimou que a chamada “economia da estética afro” movimenta cerca de R$ 30 bilhões por ano no país. O setor inclui salões especializados, serviços de trançado e a indústria de cosméticos voltados a cabelos crespos e cacheados. A formalização tende a ampliar esse mercado, facilitando o acesso a crédito e fortalecendo pequenos negócios.

Na África Ocidental, o trançado era uma forma de identificação social. Em 3.550 a.C., tribos utilizavam estilos específicos para indicar idade, posição social e estado civil. Entre os fulani, do povo Fula, eram comuns tranças finas que formavam uma coroa no topo da cabeça. Em Gana, penteados começavam estreitos e engrossavam ao longo dos fios. Certos estilos eram reservados a cerimônias, como casamentos ou funerais. Adereços como conchas e miçangas complementam os penteados, indicando idade ou atuando como amuletos.

Durante a escravidão, as tranças assumiram caráter de resistência. Pesquisas do Museu Afro Brasil mostram que mulheres escondiam sementes entre as mechas para garantir alimento em quilombos. Em algumas regiões da Colômbia, o estilo conhecido como departees codificava rotas de fuga, com tranças grossas e curvas que representavam os caminhos a percorrer. Aparente ornamento, o cabelo funcionava como mapa e ferramenta de sobrevivência.

Ao chegar ao Brasil, a tradição enfrentou o apagamento cultural. Costumes africanos foram estigmatizados, e o cabelo crespo passou a ser tratado como sinônimo de inferioridade. Ainda assim, o trançado sobreviveu como forma de proteção, identidade e autoestima diante do racismo estrutural.

No século XX, a prática foi ressignificada politicamente. Nos Estados Unidos, o movimento “Black is Beautiful”, dos anos 1960, contestou a indústria cosmética que pregava o embranquecimento e enfrentou a segregação racial. O cabelo natural, o black power e os trançados se tornaram símbolos de orgulho coletivo. No Brasil, nos anos 1970, esse espírito ganhou força, inspirando artistas como Jorge Benjor, autor da canção Negro é Lindo.

No século XXI, as tranças consolidaram-se como fonte de renda para mulheres negras em comunidades periféricas. Estilos tradicionais permanecem carregados de significados. As tranças Nagô, ligadas ao povo iorubá, preservam a memória ancestral. Os dreads, presentes desde o Egito Antigo e popularizados pelo movimento rastafári na Jamaica, tornaram-se sinônimo de resistência. O trançado Bantu, comum na África subsaariana, remete à realeza. As box braids, de origem africana e egípcia, difundiram-se globalmente e são hoje um dos estilos mais comuns.

Experiências internacionais reforçam a importância da medida. Nos Estados Unidos, desde 2019, estados como Nova York e Califórnia regulamentaram cursos técnicos específicos para trancistas em escolas de beleza. Em países africanos como Gana e Nigéria, o trançado é reconhecido como patrimônio cultural e integra programas de preservação. O Brasil, ao incluir o ofício na CBO, insere-se nessa tendência global, ainda que com atraso em relação à relevância histórica da prática.

A formalização responde também a uma necessidade de reparação. Durante décadas, trancistas foram obrigadas a se registrar como cabeleireiras ou barbeiras para exercer a profissão de forma menos vulnerável. A inclusão na CBO confere legitimidade a um ofício que já sustentava famílias e preservava memórias, mas que era tratado como atividade marginal.

A expectativa é que a regulamentação impulsione a criação de sindicatos, cursos técnicos e maior visibilidade em setores como moda e publicidade. Pesquisa realizada pela Fundação Getulio Vargas (FGV), em 2024, apontou que apenas 37% das campanhas de cosméticos no país incluíam cabelos crespos ou trançados, o que limita a inserção de profissionais do setor em espaços criativos.

Ao oficializar a profissão, o Estado brasileiro legitima um ofício que sobreviveu à escravidão, ao racismo e à marginalização. O trançado, antes instrumento de resistência física, consolida-se também como meio de subsistência econômica. Mais do que a inclusão em um código da CBO, representa o reconhecimento de uma herança cultural viva, estruturante para a identidade e para a autoestima da população negra.

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